A Montanha Mágica de Thomas Mann

Trechos de “A Montanha Mágica”

“Manifestam pouca cultura os viajantes que zombam dos costumes e dos conceitos dos povos que os acolhem; há muitos tipos de qualidades suscetíveis de conferir honra a quem as possui.”

“A música desperta o tempo; desperta a nós, para tirarmos do tempo um gozo mais refinado; desperta… e portanto é moral. A arte é moral na medida em que desperta.”

“Certamente é bom que o mundo conheça apenas a obra bela e não as suas origens nem as condições em que foi gerada; pois o conhecimento das fontes de onde provém a inspiração para o artista causaria frequentemente perturbação e espanto, neutralizando assim os efeitos da excelência.”

“Parece que será necessário procurar a moral não na virtude, quer dizer, não na razão, na disciplina, nos bons modos, na honestidade – mas sobretudo no contrário, eu quero dizer: no pecado; se lançando ao perigo, ao que é nocivo, àquilo que nos consome. Parece-nos que é mais moral se perder e mesmo se deixar debilitar do que se conservar. Os grandes moralistas não são virtuosos, mas aventureiros no mal, nos vícios, nos grandes pecados que tentam nos inclinar cristianamente diante da miséria. Tudo isso deve te desagradar muito, não é?”

“Oh, o amor, tu sabes… O corpo, o amor, a morte, esses três não se separam. Pois o corpo é a doença e a volúpia, e é ele que faz a morte, sim, eles são sensuais os dois, o amor e a morte, e seus terrores e sua grande magia! Mas a morte, tu compreendes, é, de um lado, uma coisa difamada, insolente, que nos faz corar e nos envergonha; e por outro lado é uma pulsação muito solene e muito majestosa – maior que a vida risonha de ganhar dinheiro e de encher a barriga – muito mais venerável que o progresso que tagarela pelo tempo – porque ela é a história e a nobreza e a piedade e o eterno e o sagrado que nos faz tirar o chapéu e andar com as pontas dos pés.”

Ebenalp

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Se te amei um dia

_Num dia, venci este teu jogo atroz.

Se te amei um dia, foi porque,

quando falavas com a boca cheia de alegria,

Iluminavas todos os meus dias.

Se te amei um dia, foi porque,

quando me beijavas e falavas de poesia,

Tua boca me afogava em lascívia.

Foi porque, atrás de fragilidades, vi tua força.

Foi porque, de trás da máscara, escapou um pouco da tua essência magnífica.

E vi nobreza, e vi falta de malícia, e vi a lua cheia escondida

E passei a persegui-la.

Por uma brecha, vi um lago plácido, atrás de tanta correria.

Vi teu ser todo completo, pelo vão da cortina do teu palco da agonia.

Porque, por uma fresta, vislumbrei o futuro.

Vislumbrei o Grande Homem que você seria um dia.

Se te amei um dia, foi porque você me ofereceu

Matéria bruta para a minha poesia.

A paixão de ler

Companhia de Moçambique de Pedramar

Apresentação do Seu Nego, mestre do Grupo de Moçambique do bairro Pedramar em Jacareí, SP, e seus alunos na Escola Amância, ontem.

GrupodemoçambiquePedramar

 

Como é por dentro outra pessoa

Fernando Pessoa

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

 
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

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Eu te amo

Chico Buarque de Hollanda

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás se fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

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Desaforismos de Oscar Wilde

Penso que seria muito mais adequado chamar algumas tiradas de Wilde de “desaforismos”, visto que era um provocador, seu humor era uma embalagem para seus chistes.  Como ele próprio dizia, para não ser assassinado, deve-se dizer a verdade com um toque de humor.

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“Se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio neste mundo.”

“Amar é ultrapassarmo-nos.”

“Há duas tragédias na vida: uma a de não satisfazermos os nossos desejos, a outra a de os satisfazermos.”

“A diferença entre a literatura e o jornalismo é que o jornalismo é ilegível e a literatura não é lida.”

“Toda a arte é completamente inútil.”

“A única maneira de nos livrarmos da tentação é ceder-lhe.”

“Se há no mundo alguma coisa mais irritante do que sermos alguém de quem se fala, é ninguém falar de nós.” Fonte – O Retrato de Dorian Gray

“Devia-se estar sempre apaixonado. É a razão pela qual nunca nos devíamos casar.”Fonte – Uma Mulher sem Importância

“Nenhum grande artista vê as coisas como realmente são. Caso contrário, deixaria de ser um artista.”Fonte – The Decay of Lying

“É absurdo dividir as pessoas em boas e más. As pessoas ou são encantadoras ou são aborrecidas.”Fonte – O Leque de Lady Windermere

“Há uma espécie de conforto na auto-condenação. Quando nos condenamos, pensamos que ninguém mais tem o direito de o fazer.”

“Nunca viajo sem o meu diário. É preciso ter sempre algo extraordinário para ler no comboio.”Fonte – A Importância de Ser Sério

“Aqueles que não fazem nada estão sempre dispostos a criticar os que fazem algo.”

Livro de Carolina Maria de Jesus é resgatado em vestibulares 40 anos após morte de escritora

‘Quarto de despejo – Diário de uma favelada’ está nas listas obrigatórias de exames de duas universidades. Professores de literatura valorizam inclusão e possibilidade de reflexões.

Por G1 Campinas e região
07/05/2017 08h09 Atualizado 07/05/2017 08h09

Livro “Quarto de Despejo – Diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus, está entre as novidades dos próximos vestibulares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No ano em que a morte da escritora completa 40 anos, a obra resgatada está indisponível em algumas livrarias, mas a editora responsável pela impressão garante reposição e, à espera de alta na demanda, considera hipótese de elevar tiragem.
O diário foi anunciado na semana passada como uma das três alterações na lista da Unicamp para o vestibular 2019. Os outros dois livros inseridos na lista obrigatória de leituras são a poesia “A teus pés”, de Ana Cristina Cesar; e o romance “História do Cerco de Lisboa”, de José Saramago.
Já a UFRGS confirmou , em março, a inclusão do livro na edição 2018 do processo seletivo. A universidade renova anualmente a relação de obras com a substituição de quatro títulos.

Inovações
Carolina nasceu em Sacramento (MG), em 1914, e foi morar na capital paulista em 1947, época em que surgiram as primeiras favelas na cidade. Uma das primeiras e mais importantes escritoras negras do Brasil, ela reúne em “Quarto de Despejo” relatos de parte das experiências que viveu e observou na comunidade do Canindé, com três filhos. O lançamento ocorreu na década de 1960.

Para o professor de literatura Laudemir Guedes Fragoso, a inclusão da história da catadora de papel e sucatas nos processos seletivos representa inovações em abordagens de conteúdo e forma.
“Ela foi uma voz dissonante do Brasil marginalizado, é interessante se fazer paralelo com momento atual do país”, frisou o docente ao mencionar que vê tendência na abordagem de temas sociais nas provas, incluindo literatura indígena. Ele também lembrou a relevância na tratativa de um diário.
“É um gênero antigo, do século XV, e chama atenção a busca por novas formas literárias dentro da prova”, falou o professor do Colégio Objetivo ao lembrar da inclusão de “Minha vida de menina” na edição 2018 da Fuvest. A instituição já definiu a lista para o vestibular 2019 da USP e da Santa Casa.
Conexões
O professor de literatura Octávio da Matta, do Anglo, manteve o tom e valorizou a flexibilização dos vestibulares, que passaram a incluir não somente obras clássicas, mas também livros que retratam a história recente do país e as questões que seguem em debate, incluindo “Quarto de despejo”.
“A Unicamp e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul estão convidando o estudante para uma reflexão. Carolina faz um relato autobiográfico, mas ainda hoje pode ser considerado atemporal por apresentar questionamentos sobre a violência, problema do alcoolismo e violência doméstica, a preocupação em conseguir sustentar os filhos e a revolta por não ter o que comer”, ressalta.

No caso da universidade em Campinas, em especial, o docente valorizou o fato de a mesma lista de livros contemplar a obra da escritora mineira, e “O espelho”, de Machado de Assis. ”

“É um fato gigantesco essa conexão, ele também teve uma origem humilde, foi autodidata. A Carolina aprendeu a ler pegando jornais e revistas e, diferentemente de uma obra do Aluísio Azevedo, apresenta um olhar de dentro dessa sociedade, demonstra sentimento, e não um pensamento de determinismo, instintivo. A versão dela é a mais pura realidade”.

Estoques

A assessoria de imprensa da Editora Ática informou, em nota, que recebeu uma nova reimpressão do livro na segunda quinzena de abril. O desabastecimento, segundo a empresa, ocorreu por causa do “espaço” entre esta etapa e a distribuição. “Em nosso e-commerce o livro já está disponível e ao longo das próximas semanas o livro voltará às livrarias. O livro está em sua décima edição”, diz nota.
Em relação à tiragem de “Quarto de despejo”, a editora mencionou que ela já foi elevada em 20%, em virtude da inclusão na lista da UFRGS. A expectativa é de que outra seja feita quando houver queda do estoque, por causa da colocação da obra entre os assuntos do vestibular da Unicamp.
“Esperamos que haja um aumento na procura pela obra, naturalmente, mas sabemos que obras de literatura não precisam ser necessariamente compradas novas, podem ser emprestadas de bibliotecas, de amigos ou adquiridas de segunda mão em sebos. Por isso, não temos previsão de nova tiragem enquanto tivermos estoque suficiente para atender as demandas”, informa texto.
Rede pública
Em 2013, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) comprou e distribuiu, por meio do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), 29 mil exemplares do livro para escolas públicas com alunos em anos finais do ensino fundamental. De acordo com o governo federal, não há reserva ou destaque de exemplares, nem previsão para novas aquisições do título.

“Por meio do PNBE, são beneficiadas todas as escolas públicas, sem necessidade de adesão. […] Os livros são encaminhados diretamente às escolas para a composição dos acervos das bibliotecas e disponibilização dos exemplares aos alunos, geralmente, por meio de empréstimos e consulta.”

Carolina Maria de Jesus, a catadora de letras

por Aline Valek — publicado 15/03/2016 10h15

A escrita de Carolina Maria de Jesus é sua forma de se recusar a ser “despejo” em uma sociedade desigual que a empurrou para a miséria

Na segunda-feira, 14 de março, completaram-se 102 anos do nascimento de uma escritora brasileira de grande importância para a nossa literatura, mas que ainda nos dias de hoje permanece desconhecida para muita gente.

Foi numa comunidade rural em Sacramento, Minas Gerais, que nasceu Carolina Maria de Jesus. Mas foi numa favela em São Paulo que ela tornou-se escritora – e produziu a obra pela qual seria conhecida até hoje.

Quarto de despejo já piscava em letras neon diante de mim, de tantas recomendações acumuladas, como todos aqueles clássicos na minha prateleira mental de “não acredito que você não leu esse ainda”. Então eu li e entendi porque é uma obra tão importante da nossa literatura.

Carolina de Jesus
A escritora durante a noite de autógrafos do livro “Quarto de Despejo”, em São Paulo, 1960

Carolina Maria de Jesus foi uma das escritoras brasileiras mais expressivas, traduzida para mais de dez idiomas. No Japão, o livro ganhou o título de Karonina nikki, algo como O Diário de Carolina.

Quarto de Despejo foi seu maior sucesso, mesmo assim não é tarefa das mais fáceis encontrá-lo nas livrarias; é mais provável que seja encontrado nos sebos.

Não por acaso só recentemente pude descobrir sua história e sua escrita: se o trabalho das escritoras é geralmente subvalorizado e apagado, o trabalho de uma escritora negra, pobre e favelada encontra ainda mais dificuldades para superar a barreira da invisibilidade.

Catadora de lixo e moradora da favela do Canindé, em São Paulo, na segunda metade da década de 50, Carolina usava os cadernos que encontrava no lixo para escrever sobre seu cotidiano e pensamentos. Virou um diário que passou a ser publicado num jornal; há inclusive trechos em que os vizinhos vêm tirar satisfação com ela sobre algo que ela escreveu.

Entre as idas ao açougue para buscar restos de ossos que lhe davam, os dias catando papel nas ruas de São Paulo enquanto os três filhos ficavam sozinhos no seu barraco e as noites insones observando as estrelas, Carolina refletia sobre o cenário de desigualdade e escrevia sobre as pequenas coisas que compõem a condição humana.

A preocupação com o que vai se comer no dia. A repetição da busca da água todas as manhãs. A brutalidade do ambiente: a cidade, a favela, as pessoas.

O quarto de despejo surge como uma metáfora para a desigualdade que estabelece seu papel e sua posição nessa história: ela aponta que, enquanto o centro da cidade é a sala de visitas, a favela é o quarto onde se joga o indesejável, o entulho, tudo aquilo que se quer esconder. Sua escrita, no entanto, é sua forma de se recusar a ser “despejo”, a ser “resto”.

Sua voz é marcante não pelos “erros” gramaticais preservados pela edição (o que aliás me deixou a dúvida: isso teria sido uma forma de respeitar sua escrita, de mostrar que o texto tem valor independente de “norma culta”, de apontar que ela não precisa ser corrigida ou transformada em algo dentro do padrão, ou seria uma forma de apresentar uma escrita “autenticamente de favelado”? Realmente, não sei), mas sim pela sensibilidade para os detalhes normalmente desprezados pelo nosso olhar.

O olhar apurado de Carolina, de quem está acostumada a olhar para o lixo e ver o que tem valor ali, ou de quem procurava catar as luzes distantes das estrelas quando todos ao seu redor já estavam de olhos fechados, convida o leitor a ver humanidade nos lugares onde a cidade e a sociedade só nos ensinaram a ver miséria.

Carolina foi muito prolífica, para além do Quarto de Despejo; escrevia romances, contos, poemas, e, além daqueles que foram publicados – inclusive depois de sua morte, como Diário de Bitita –, ainda há milhares de páginas de material inédito de Carolina, entre eles, seis romances, mais de cem poemas e cerca de 67 crônicas.

Em todo esse trabalho, a escritora deixou marcada uma visão particularmente Caroliniana do mundo e de uma sociedade desigual, que pode ter se transformado de sua época para cá, mas que persiste discriminando, isolando e apagando minorias.

Na escrita, Carolina pode expressar a voz que era negada a quem vivesse em suas condições. Uma voz que, apesar de todas as dificuldades, preconceito e do insistente esquecimento que se estende até os dias de hoje, persiste como a base de uma obra autêntica e importante, mas, sobretudo, humana e verdadeira.

“Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas miserias que nos rodeia. (…) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (…) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.

Fiz o café e fui carregar agua. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama.

As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginarios.”

(trecho de Quarto de Despejo, 1960)

Além de minhas forças

Além de minhas forças

Doce brisa trouxe até mim um pássaro canoro
Que coloriu meus dias amenos;
Que em minhas manhãs colocou um sorriso;
Que aspergiu vigor em meus membros
E aspirou de mim o cansaço.

Silêncio! Quero escutar sua serenata
Para embalar o meu sono sereno;
Elevar sobre mim meu espírito;
Fazê-lo pousar no meu braço.

Quero seu entusiasmo.
Quero seu sopro de vida divino,
Sua leveza, sua graça, seu brilho.
Sem querer, sob suas asas eu vivo!

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Vício

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Sísifo, de Ticiano, 1549
Sim, sempre tenho um vício.
Subscrevo, confesso, admito!

Sim, sou viciada, mas não naquilo que imagina o meritíssimo.
Mas sim em querer coisas que nunca existiram.

Viciada em fingir um poema para cada instante que deveria ser eterno:
Cada pequena folha que de uma árvore cai sem fazer alarde;
Cada música que em mim provoca um sentimento terno;
Cada cão sarnento que em minha rua late;
Cada carcaça cansada que em minha cama arde;
Cada cabeça que rola,  secando ao sol e esfriando ao relento...

É vício porque é inútil como trabalho de Sísifo.
Se me proponho a fazê-lo, porém, saia do meu caminho!

04-01-2013

Evolução

ANTERO DE QUENTAL

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta?
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo…

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo…

Hoje sou homem – e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade…

Interrogo o infinito e às vezes choro…
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

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Las manos de la protesta, de Oswaldo Guayasamín, 1968

Entrudo midiático, “show dos atrasados” é a nova jabuticaba brasileira

Sadismo em relação a atrasados no Enem é filho direto da cobertura espetacularizada da imprensa, que agora retroalimenta essa implosão ética e estética

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

entrudoEsse sadismo em relação aos atrasados do Enem é filho direto da dramatização irresponsável feita anualmente pelos veículos de imprensa. Ano a ano fomos vendo essa reprodução de imagens (fotógrafos e cinegrafistas invadindo as vidas dos estudantes, em nome da notícia-mercadoria), banalizando-as, até que pessoas suficientemente canalhas construíram o tal “show dos atrasados”.

O tema esteve entre os destaques mundiais do Twitter, no domingo. Com a ajuda da imprensa, consolida-se o hábito de zombar de quem chega atrasado no vestibular. O drama pessoal dos demais – um ano inteiro de estudos, os planos profissionais adiados – se torna apenas um motivo para diversão. Uma diversão baseada na humilhação. Em São Paulo, em Porto Alegre, os sádicos se multiplicam.

Difícil imaginar muitas outras coisas que ilustrem o momento de implosão ética em que vivemos no Brasil. E nesse caso temos de falar de Brasil, sim. Podem mudar aquele chavão do “país das jabuticabas”, a fruta a ilustrar nossas características únicas. Somos o país do “show dos atrasados” – de gente abjeta que se orgulha dessa condição, da naturalização da psicopatia como comportamento social. Do orgulho da boçalidade.

A SOCIEDADE BRUTA E O JORNALISMO BUFO

Os pauteiros sem imaginação (ou conformados com diretrizes toscas de seus patrões) construíram parte dessa narrativa durante décadas. Evadiram choros, rostos desesperados. No limite do grotesco. Essa invasão foi e é também uma invasão estética, um atentado simultâneo ao bom gosto e à compaixão. Os psicopatazinhos não sabem, mas foram gestados por essa era de reprodutibilidade do constrangimento.

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Estamos diante de uma sociedade bruta acorrentada a um jornalismo bufo, ambos a exibir seus simulacros de dentes, suas bocas arreganhadas cheias de desprezo, seus cérebros deformados e seu coração exibicionista. Regride-se porque alguém apontou para esse caminho antes, não apenas porque 200 – ou 2 milhões de – imbecis tiveram a ideia “genial” de troçar da desgraça alheia.

(Nunca isoladamente, claro. Não fariam isso sozinhos. Pois são covardes. O movimento é de massa. Atos que esses jovens não fariam individualmente são feitos sob a blindagem da “festa popular”. E das redes sociais.)

ZOMBETEIROS NEM ORIGINAIS SÃO

E agora chegamos àquela parte onde o pai homenageia o filho – dando a ele cobertura. Só que o “show dos atrasados” não é o filho, é o pai. A imprensa já fazia esse show, os filhos fiéis (e não degenerados, portanto) somente embaralharam os sentimentos que já eram espetacularizados. Essas tristes faces que vemos zombando dos atrasados, portanto, nem originais são, são variações em torno da mesma falta de horizontes.

Como uma manchete do Notícias Populares dos anos 90, feita por jornalistas cínicos: “Retalhou a orelha do aluninho”. Sobre um crime cometido por uma professora. Qual a diferença em relação ao sadismo atual? A institucionalização e o singelo fato de que profissionais da comunicação deveriam estar entre os primeiros a promover direitos elementares. Hoje retratam os que zombam, emprestam a eles seus 15 segundos de curtidas.

Os sorrisos e gargalhadas não são sorrisos e gargalhadas, são contrações faciais parentes das mesmas contrações faciais protocolares de antes. A empatia anterior não era exatamente autêntica. Podia até mobilizar empatias autênticas, mas era uma farsa. Os novos cafajestes apenas capturaram esse desprezo no ar e o transformaram em carnaval. É o bloco na rua que eles têm para hoje.

LEMBRAM-SE DE BONINHO?

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Como se estivéssemos assistindo a um entrudo, um entrudo midiatizado. Qualquer semelhança com Boninho atirando ovos em pedestres não será mera coincidência. Engana-se quem pensa que os vestibulandos atrasados são as únicas vítimas. Somos todos nós, os que vivemos sob a órbita dessa mentalidade regressiva. Do jeito que vai teremos de lutar com clavas contra ela, até que o último portão da caverna nos separe.