Destaque

Termo “Holocausto” não é prerrogativa de um episódio histórico

Mesmo sem ter citado a palavra “Holocausto” no discurso em que comparou a guerra do governo sionista de Israel contra palestinos na Faixa de Gaza com o que o nazista Adolf Hitler fez com o povo judeu, o presidente Lula conseguiu chamar a atenção do mundo e, no Brasil em particular, abriu um debate sobre o emprego do termo “holocausto” para descrever outros genocídios.

Nunca será possível determinar o total exato de mortos pelo regime nazista. Especialistas trabalham com um número entre cinco e seis milhões de judeus. Mas o dado extravagante, associado a outras características peculiares do extermínio judeu, são suficientes para que alguns defendam que o termo Holocausto seja usado exclusivamente para se referir a esse episódio trágico da história da humanidade.https://d-15806245382230693.ampproject.net/2402141842000/frame.html

Para a antropóloga Lucia Helena Rangel, esse ponto de vista está equivocado. “Os israelenses e judeus tomaram para si a palavra Holocausto como um substantivo, [como se] Holocausto fosse o que Hitler fez com os judeus. E não é bem isso. Existem muitos holocaustos”, disse em entrevista ao jornalista Luis Nassif, do GGN.

Holocausto não é prerrogativa de um episódio histórico. Todos os holocaustos são comparáveis, sim, porque eles matam das mais variadas maneiras. Fisicamente, através de guerras e embates armados; através da fome; e têm matado, atualmente, através das questões ambientais”, defendeu Lucia Helena.

Ao GGN, o historiador Flávio Henrique Cardoso criticou o que chamou de “cinismo” da população e da mídia brasileira, que supervalorizam genocídios quando estes ocorrem no Norte do Globo, esquecendo de inúmeros outros massacres praticados pelos países colonizadores em diversas partes do mundo.

“A gente precisa parar de hierarquizar genocídio. Genocídio é genocídio. Lula, quando fez a analogia, falou das semelhanças das ações do Estado de Israel com as ações dos nazistas, e há muitas semelhanças. Não dá para dizer que é a mesma coisa, mas há muitas semelhanças, pontuou.

“A história do colonialismo é a história do genocídio”

O internacionalista Bruno Huberman, especializado em colonialismo e membro de um grupo de estudo sobre conflitos internacionais, disse em entrevista ao GGN que os elementos centrais da composição dos genocídios pelo mundo são justamente o colonialismo e o racismo. “A história do colonialismo é a história do genocídio”, disparou.

Huberman citou a obra do australiano Peter Bold, que fala em “colonialismo de assentamento ou de povoamento”. Esse colonialismo é fundamentado na eliminação da população nativa de um país ou região, que pode se dar através de morte, expulsão, aculturamento, assimilação e miscigenação ou, ainda, confinamento em reservas (como no caso dos indígenas e quilombolas) ou enclaves – exatamente a situação dos palestinos na Faixa de Gaza.

Para compreender como se relacionam processos coloniais muito distintos – como o britânico nos EUA, o português e espanhol na América do Sul, ou mesmo o colonialismo israelense na Palestina – é preciso analisar a propagação de uma cultura de “desprezo pela vida da população subalterna”.

“O que a gente mais vê no Brasil desde o processo colonial é a desumanização dos povos indígenas e negros, e o mesmo se aplica no caso da Palestina. Racismo e violência motivam o genocídio. Por isso que a gente vê generais israelenses chamando palestinos de animais. Nazistas chamavam os judeus de ratos. Aqui chamam os negros de macacos. Sempre vai haver um processo de desumanização para justificar a violência mortífera. Essa necropolítica demonstra a conexão entre os diversos genocídios”, explicou.

Escravidão e massacre indígena, os holocaustos brasileiros

Flávio Cardoso, historiador e idealizado do projeto Negrociando, disse ao GGN que a história da escravidão no Brasil e no mundo já foi comparada, por organismos internacionais, ao holocausto judeu e ao bombardeamento atômico de Hiroshima-Nagasaki.

“Escravidão no Brasil foi um genocídio comparado ao holocausto e a Hiroshima. (…) Só de mortes [de escravos negros que naufragaram] no Atlântico, pelas péssimas condições da viagem, morreram 2 milhões. Isso é genocídio”, destacou.

Segundo os estudos do premiado pesquisador e escritor Laurentino Gomes, mais de 12,5 milhões de africanos foram embarcados à força para o continente americano para serem escravizados. Desse total, 40% desembarcou no Brasil, ou seja, 4,9 milhões. Quando a Lei Áurea finalmente foi assinada, existiam apenas 700 mil negros no país.

Flávio Cardoso chama atenção para o genocídio negro segue em curso, já que a população sofreu com o branqueamento e marginalização social. “A gênese da palavra genocídio – que significa matar povos, etnias, grupos – você vê em todos os dados do IBGE sobre o Brasil. Há um genocídio em movimento. Curiosamente, pode comparar os dados de 50 anos atrás e os dados de hoje, é sempre um grupo específico que morre mais.”

Para a antropóloga Lucia Helena Rangel, que é assessora do Conselho Indigenista Missionário, o massacre do povo e a exploração dos territórios indígenas também configuram outro holocausto brasileiro.

“Quando garimpeiros contaminam água e solo com mercúrio, isso é genocídio. Há dolo. Eles sabem que essa contaminação vai trazer problemas para a população”, disse.

Para Cardoso, é preciso alterar duas concepções sobre o termo genocídio, cujo conceito foi estabelecido pelos organismos internacionais na década de 1940. Primeiro, é preciso desmistificar a ideia de que massacres que aconteceram antes dessa data [como a escravidão nas Américas] não se enquadram como genocídio. Segundo, ampliar o crime de genocídio para condutas praticadas não só com dolo, mas também involuntariamente.

“Existe o genocídio inconsciente, ou seja, você pode praticar o genocídio sem ter intenção. E o Brasil tem vários exemplos dos dois”.

Flávio Cardoso, Lucia Helena Rangel e Bruno Huberman foram entrevistados por Luis Nassif no programa TVGGN Justiça, que é transmitido ao vivo toda sexta-feira, sempre às 18 horas.

https://jornalggn.com.br/politica/termo-holocausto-nao-e-prerrogativa-de-um-unico-episodio-historico/

Destaque

Judeus ortodoxos na Palestina condenam comentários de Yona Metzger

JUDEUS ORTODOXOS NA PALESTINA CONDENAM COMENTÁRIOS DE YONA METZGER

NETUREI KARTA DA JUDADEIA ORTODOXA
JERUSALÉM, PALESTINA
31 de janeiro de 2008 (Continua muito atual)


COMUNICADO DE IMPRENSA URGENTE

Na semana passada, o chamado Rabino Chefe do chamado Estado de “Israel”, Yona Metzger, fez declarações cruéis e provocativas afirmando que os palestinianos que vivem em Gaza deveriam ser transferidos das suas casas para o deserto do Sinai.

Yona Metzger não é uma autoridade autêntica da Torá, apesar de carregar o chamado título de “Rabino Chefe”. Os rabinos-chefes do Estado Sionista só têm legitimidade aos olhos dos Judeus Sionistas. Seu status como rabino-chefe não é diferente da liderança de Theodor Herzl, que também usava barba!

O Estado de “Israel” é ilegítimo de acordo com os ensinamentos da Torá. A fundação do Estado de “Israel” está em contradição direta com os ensinamentos da Torá que proíbe o estabelecimento de um Estado Judeu e ordena que os Judeus permaneçam no exílio até serem libertados desse exílio pelo próprio Deus, sem qualquer intervenção humana, no qual tempo, todas as nações do mundo viverão juntas em paz.

Da mesma forma, estamos proibidos de nos rebelar contra qualquer nação. Devemos continuar a ser cidadãos pacíficos e leais, em todos os países em que residimos. Portanto, oprimir o povo palestino, prejudicá-lo, roubar suas terras, expulsá-lo, etc. é totalmente proibido de acordo com a nossa Sagrada Torá.

As autoridades rabínicas têm-se mantido universalmente em oposição veemente à ideologia do sionismo e têm-se oposto ao estado de “Israel” desde a sua criação até aos dias de hoje.

Os palestinianos têm o direito inerente de regressar às suas terras na Palestina histórica e de estabelecer o seu estado independente em toda a Terra Santa, que lhes foi tirada à força pelos sionistas. Na verdade, muitos habitantes de Gaza são refugiados que foram expulsos de outras áreas da Palestina pelos sionistas desde 1948.

Os rabinos-chefes do estado sionista, sejam eles Metzger ou qualquer outro, são apenas fantoches muito bem pagos dos sionistas e servem os seus mestres sionistas sem se preocuparem com o bem-estar do povo judeu, dos palestinianos ou de qualquer outra nação do mundo.

O Rabinato Chefe do Estado Sionista, tal como todas as instituições sionistas, só tem importância devido ao seu poder coercitivo sobre a vida religiosa, econômica e cotidiana dos residentes judeus da Palestina ocupada pelos sionistas. Quem reconhece e apoia o Estado Sionista, mesmo inocentemente, foi dominado pelo herético movimento sionista, por maior que seja o halo que lhe é concedido pelas supostas autoridades judaicas.

Os Rabinos Chefes e outros rabinos que apoiam a existência do estado sionista são perversos emissários do mal. Tais “rabinos” promovem o ódio e a guerra, e usam os seus poderes coercivos para exigir a subserviência dos judeus ao empreendimento sionista. Esta descrição que postulamos de tais pessoas tem sido a posição de longa data dos rabinos autênticos no último século.

Yona Metzger expressa sentimentos de desumanidade que se originam na sua lealdade ao culto do sionismo e está perfeitamente preparado para sacrificar vidas judaicas no altar da sua idolatria, o Estado de “Israel”. Qualquer pessoa moral preferiria ver os fomentadores da guerra sionistas, incluindo Metzger, removidos da Terra Santa. METZGER E TODOS OS RABINOS SIONISTAS NÃO REPRESENTAM A RELIGIÃO JUDAICA.

Apelamos urgentemente aos líderes das nações mundiais, especialmente às grandes potências, para que parem de apoiar o regime sionista. Muitas nações acreditam que apoiar o sionismo demonstra amizade com o povo judeu. Isso está incorreto! A verdadeira amizade ao Povo Judeu pode ser demonstrada salvando todos os povos do Médio Oriente, incluindo os Judeus, das maquinações sanguinárias do perigoso Estado de “Israel” e desmantelando o regime sionista total, pacífica e rapidamente nos nossos dias.

Que Deus Todo-Poderoso nos proteja da influência do sionismo em geral, de seus líderes belicistas e sanguinários, e de seus servos perversos que se autodenominam “rabinos”.

Fonte:

https://www.nkusa.org/activities/Statements/20080131_nkpalestine.cfm

Destaque

Nossos verdadeiros inimigos

Em 2010, soldados estadunidenses fizeram um protesto contra o projeto imperialista dos EUA de expansão de ataques contra países pobres, mas ricos em gás e petróleo: a “guerra infinita”, que sustenta a indústria bélica com os impostos de seus cidadãos. Michael Prysner e outros 130 veteranos foram presos após esse discurso.

Destaque

Rio de Niterói

Parque da Cidade
tão lindos
tão tristes
estes trópicos
estas bocas ocas

esquecemos nosso um terço arariboia
e nós é que caminhamos com buracos
sonâmbulos

sem rei
sem lei
sem fé


Godoy, 3 de fevereiro de 2023.

Destaque

Conselho

  • “Prudência! Quem mais corre mais tropeça.”

– Ato II – Cena III: Frei Lourenço

In Romeu e Julieta de William Shakespeare

O sábio Frei Lourenço tenta alertar os jovens amantes para não se precipitarem, para cultivar a paciência, algo tão difícil para os jovens impulsivos. Hoje, porém, com a velocidade da tecnologia e com os automatismos no uso de dispositivos eletrônicos, todos nós estamos sujeitos a rompantes, a gestos bruscos, impensados e impensáveis. Não existe mais um discreto Frei Lourenço para nos aconselhar. Temos a Literatura, pena que ninguém mais tenha paciência para a leitura, que deleita e ensina.

Destaque

Driving South – Goth babe

Driving South

Hello?

Can I help you?

Would you take me out there?

Alright

And the time to go out there is now

Darling, don’t you know it’s time for another

Time for another with you?

Don’t you know it’s time for another

Time for another with you?

Lay your heads on the fading light

We’ll sleep ‘til noon and our days are kind

And only for the month of September

We would stay half alive

And only for the trees that stay green

They keep me from losing my mind

Darling, don’t you know it’s time for another

Time for another with you?

Don’t you know it’s time for another

Time for another with you?

I feel the breeze pick up and it’s time

I’ve seen my breath and I know it’s fine (it’s fine)

And only for the month of September

We would stay half alive

And only for the trees that stay green

They keep me from losing my mind

Darling, don’t you know it’s time for another

Time for another with you?

Don’t you know it’s time for another

Time for another with you?

Don’t you know it’s time for another

Time for another with you?

Don’t you know it’s time for another

Time for another with you?

Destaque

Cinco poemas de Jarid Arraes para o Setembro Amarelo by Mulheres que Escrevem in Medium

https://medium.com/mulheres-que-escrevem/cinco-poemas-de-jarid-arraes-para-o-setembro-amarelo-79941d6d59c3

mão dada

observo as linhas da minha mão
correndo águas
a linha do amor do dinheiro

qual será a linha
da loucura

o rio de traços finos
falhos
tremidos
que revelam a mente sã

ensandecida

qual será a linha da loucura
na palma da minha vida

qual será a veia herdada
vendo a marca infligida

qual será a linha
louca
que corta o rio
da minha mão

da minha mãe
por quem fui
parida

doze horas em trabalho
de partida
só pra nascer
com o carimbo da mão
em linha
enlouquecida

qual será
essa
loucura
costurada
essa linha
desmedida
essa
palma
bordada

eu olho os rios da minha mão
e enlouqueço
calada

alta ajuda

dizem que são necessários
trinta dias
para que um novo hábito
se torne rotina

dizem que o problema
é a gordura que o
açúcar refinado na
verdade que todo
açúcar que as frutas
também
tudo faz mal

e dizem que yoga
e pilates
exposições gatos cães
pássaros livres e
nadar com os golfinhos
não

a natureza se desequilibra
assim como bambeamos
movidos a ansiolíticos
e cafeína

até mesmo os que dizem
que a meditação
os parques as longas
caminhadas na praia
a água de coco o óleo
de macadâmias
as escovas
elétricas e o chás
feitos das ervas
tiradas do chão fazem
bem

até mesmo os que dizem
que todas as religiões
que a tolerância o
ecumenismo as missas
de sétimo dia as velas
os filmes nacionais
os editais o apoio
do governo a importância
dos movimentos sociais

até mesmo
os que dizem que a
indústria o consumo
as leis a punição
até os que sentem
pena

até eles dizem
que trinta dias passam
mas não habituam
a vida
em quem de nada
faz questão
.


Dora

nunca esqueço de Dora
de sua paralisia
sua cegueira
sua oposição transformada
em patologia

como os homens
amam os códigos
que catalogam a loucura
feminina

e distribuem sintomas
por cima dos
hematomas
e taças de sangria

em suas camas
forradas com mentiras
e blocos de papel
onde escrevem cárceres
onde descrevem leitos
onde Dora e eu e todas
nós
devemos deitar
em espera

nunca esqueço do caso
de Dora
da coragem sufocada
por mãos livros
por páginas
escritas por homens
como ele
com números que são
camisolas
à força
e que mais cedo ou
mais tarde
acabamos por vestir

porque em seus blocos
camas poltronas
em seus estetoscópios
eles escutam a rebeldia

porque Dora e eu e todas
nós
nos fazemos
ouvir

duas cadeiras
conte para mim
sobre como tudo anda difícil
e nem a cerveja se paga
e nem a escrita se cria
me conte

sobre os imprevistos
e as curvas fechadas
sobre os livros
abandonados
as exposições vazias
de significado

me fale sobre a rotina
que esmaga
com as palavras que
sempre as mesmas
se usa

e sobre a cidade cinza
os rios espumantes
o quilo de sal
caro
que se come
me conte

sobre as temperaturas
altas e os corações
apáticos
sobre as relações
de supermercado
os produtos
políticos

eu quero ouvir
sobre as pequenas vidas
os pequenos instantes
de vida
que ainda resistem


.

contato

a mente doente
tem traços e partes
de imagens
incompletas
- dizem
e a gestalt pode
ajudar
porém
todos buscamos
a cura rápida
os comprimidos
os laudos
para que sejam
validados
os momentos piores
mais eremíticos

porque todos
estamos
jogados
ao nosso pessoal
veredicto

sentamos em poltronas
cara a cara com o incógnito
e abrimos portas que
libertam
carcaças
serpentes
formigas
na boca

somos ouvidos
e punhos suados
trocamos os olhos
pela voz embargada

não você
não queria
você não
estaria ali
se não fosse
esse buraco
bem no meio
chamativo

não se preenche
morte com
vida
e talvez não
exista conteúdo
para a mente
evacuada

mas tente sentar
responder sobre pais
divórcios sobre aquele
tio que tocou
ali onde se partiram
as louças

tente juntar as imagens
infantilmente

foi aqui
aponte onde
- nessa boneca loira
aqui aqui

segura nas cordas
vocais a vontade
de correr
a tentação carnal
de abandonar-se
...

somos ouvidos

com os punhos suados
mas nossos punhos
escrevem a verdade
do mundo
a beleza civilizatória

há ainda um pouco
que segura o peso
você pode dormir
e jogar
com os pesadelos

mas levante-se
deixe os olhos pousarem
as pernas vão chacoalhar
mas um dia
cara a cara
com um ser familiar
os tendões terão descanso

tudo será outra coisa
nada novo
mas outra estrutura

uma casa com aldavras
vedada aos tios
limpa de estilhaços
um chão onde esticar
a coluna — chorar

e isso será mais
do que fora

e isso será o mais
próximo
da cura


Jarid Arraes

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora dos livros “Um buraco com meu nome“, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras“. Curadora do selo literário Ferina, atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Até o momento, tem mais de 60 títulos publicados em Literatura de Cordel.

Estes poemas, publicados na Mulheres que escrevem, foram escolhidos pela escritora, cordelista e poeta, Jarid Arraes, para não nos esquecermos do significado do Setembro Amarelo, mês que marca a campanha brasileira de prevenção ao suicídio, iniciada em 2015 em Brasília. É uma iniciativa do Centro de Valorização da Vida, do Conselho Federal de Medicina e da Associação Brasileira de Psiquiatria. Acreditamos que a escrita e a literatura têm um papel fundamental na conscientização e debate de questões tão importantes como esta. Caso precise de ajuda, não hesite, ligue para a CVV (188) ou procure a ajuda especializada. A saúde mental é um assunto sério e deve ser tratada com respeito e atenção. Agradecemos imensamente à Jarid Arraes por sempre abordar este tema com cuidado e seriedade.

Leia mais poemas, ensaios e entrevistas com a autora aqui:
Mulheres que Escrevem entrevista Jarid Arraes
"Eu quero que a gente olhe para essa feiura. Isso é sobre nós"
medium.com

Três poemas de Jarid Arraes
nós choramos, loucas de primeira viagem
medium.com

Uma mulher negra escrevendo em busca de casa
Resgatando um conti



Destaque

20 de Novembro


Autor: Lucas Vieira Aurélio / Bocaina Experience


No Vale Histórico
Quem é lembrado?
O sinhô
Ou o escravizado?
Viva quem chibatou
Ou o chibatado?
Quem comprou eu sei
E quem foi comprado?
"Um casarão de rei!"
Feito em suor sangrado
Sangue negro sagrado
Sabor? Amargo
Famílias findadas
Amistad lotado
Hoje: "vá embora"
Ontem: "venha forçado"
Angola, Benguela, Monjolo
Criança, homem, moça
Congo, Cabinda, Rebolo
Todos vindo à força
Onde cativeiro é lucro
Sincretismo é fé
Miscigenação? Estupro
Tudo pelo café
Séculos de labor
Muita dor, sem ser pago
E se a Lei Feijó vingar
cruze os negros como gado
Os últimos a abolir
E de uma maneira torta
No país da Lei de Terras
A Lei Áurea nasce morta.
"Livre" só de bens
De herança o racismo
Equidade é preciso
Igualdade é cinismo
Samba, comida e festa
Cultura negra pro mundo
"Me dá uma ajuda, sinhô"
"Vai trabalhar, vagabundo"
Onde preconceito é piada
Falta uma que diz:
O que é o que é um pontinho preto na fazenda?
É um negro sustentando o país. ✊🏾

#20denovembro #consciencianegra #zumbi #valehistorico #turismo #bocainaexperience #BXp #bocainaxp #africa #brasil #sjb #sjbarreiro
Destaque

AMOR – POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL

Carlos Drummond de Andrade

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Destaque

Trindade

De volta à Trindade

Trirreme
Triatleta
Tricampeão
Tricolor
Trigueiro

Tripudiando
Santíssima Trindade
O pai
O filho
O espírito

Tridentes
A mãe
A filha
A carne

Tribunal

De volta à Trindade
Trindade
Trindade
Trindade
Destaque

Para uma jovem amiga que tentou se suicidar

Claudio Bertoni


Eu gostaria de ser um ninho se você fosse um passarinho
Eu gostaria de ser um lenço se você fosse um pescoço e estivesse com frio
Se você fosse música,
eu seria uma orelha
Se você fosse água,
eu seria um copo
Se você fosse a luz,
eu seria um olho
Se você fosse um pé,
eu seria uma meia
Se você fosse o mar,
eu seria uma praia
E se você ainda fosse o mar,
eu seria um peixe,
e nadaria em você
E se você fosse o mar,
eu seria sal
E se eu fosse sal,
você seria alface,
um abacate ou, pelo menos, um ovo frito
E se você fosse um ovo frito,
eu seria um pedaço de pão
E se eu fosse um pedaço de pão,
você seria manteiga ou geleia
Se você fosse geleia,
eu seria o pêssego na geleia
Se eu fosse um pêssego,
você seria uma árvore
E se você fosse uma árvore,
eu seria sua seiva
e correria em seus braços
como sangue
E se eu fosse sangue,
viveria em seu coração.

Destaque

Silêncio no Pacaembu

Já doente, Lobato não pôde comparecer ao comício do Pacaembu, em 15 de julho de 1945, que homenageou Prestes. Mas fez, de sua residência, por telefone, uma saudação ao líder comunista. Quando sua fala foi anunciada, pediu-se silêncio máximo. A voz grave do escritor foi ouvida no mais absoluto silêncio:

Tenho como dever saudar Luis Carlos Prestes porque sinceramente vejo nele uma grande esperança para o Brasil. Vejo nele um homem nitidamente marcado pelo destino. Vejo nele o único dos nossos homens que pelos seus atos e pelo amor ao próximo conseguiu elevar-se à altura de símbolo. Símbolo de quê? De uma mudança social. A nossa ordem social é um enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores, e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores. Esterco doloroso e gemebundo. Nasci na classe privilegiada e nela vivi até hoje, mas o que vi de miséria silenciosa nos campos e cidades me força a repudiar uma ordem social que está contente com isso e arma-se até com armas celestes contra qualquer mudança. A nossa ordem social me é pessoalmente muito agradável, mas eu penso em mim mesmo se acaso houvesse nascido esterco. Essa visão da realidade brasileira sempre me preocupou e sempre me estragou a vida. Nada mais lógico, pois, do que meu grande interesse pelo homem que não conheço, mas acompanho desde os tempos em que um punhado de loucos lutava contra todo o poder do governo. E lutava por quê? Com que fim? Pela conquista do poder? Fácil seria isso, como foi para os companheiros que desandaram. Prestes não lutava por. Lutava contra. Contra quê? Contra a nossa ordem social tão conformada com o sistema do mundo dividido em flores e esterco. E pelo fato de sonhar com a grande mudança foi condenado a trinta anos de prisão, como pelo fato de sonhar um sonho semelhante, Jesus foi condenado a morrer na tortura. Os acontecimentos do mundo vieram libertar o nosso homem-símbolo e ei-lo hoje na mais alta posição a que um homem pode erguer-se em um país. Ei-lo na posição de força de amanhã. Na posição do homem que fatalmente será elevado ao poder e lá agirá para que o regime de flores e esterco se transforme em algo mais equitativo e humano.

Destaque

Que ave é esta?

Ontem, estava passeando pelo meu bairro com o Léo, meu cachorro e, de repente, me assustei ao me deparar com uma ave imensa comendo lixo de uma vizinha. Tal imagem me pareceu surreal, apesar de estar cada vez mais comum avistar tucanos, corujas e cobras por aqui.

Esse é o sinal mais explícito de que estamos invadindo mais e mais os espaços dessas espécies, por isso elas são obrigadas a se adaptar às regiões urbanas. Gestos simples, como colocar o lixo nos dias em que o caminhão de coleta passa, evitam a intoxicação de animais com nossos detritos. Mas a maioria das pessoas está c. e andando pra isso.

Fiquei intrigada para desvendar qual seria sua espécie. Parecia um gavião ou uma águia muito imponente. Ela ficou rondando o bairro até pousar numa palmeira imperial de porte igualmente majestoso e ficou observando das alturas nossa extasiada pequenês atravessando as ruas de um domingo sossegado.

Descobri que a ave é um carcará, aquele da música “carcará, pega, mata e come” que inspirava medo aos retirantes da seca no sertão. Hoje, é esse parente dos falcões que deveria nos temer.

Que São Francisco de Assis (se realmente tiver tal poder) te abençoe e te proteja de todos nós!

Destaque

Se não chover nem ventar

Se não chover nem ventar,
se a lua e o sol forem limpos
e houver festa pelo mar,
- ir-te-ei visitar.


Se o chão se cobrir de flor,
e o endereço estiver claro,
e o mundo livre de dor,
- ir-te-ei ver, amor.


Se o tempo não tiver fim,
se a terra e o céu se encontrarem
à porta do teu jardim
- espera por mim.


Cantarei minha canção
com violas de eternamente
que são de alma e em alma estão.
- De outro modo, não.

Cecília Meireles
Destaque

Aforismo de Simone Weil

“A BELEZA do mundo não é um atributo da própria matéria. É uma relação do mundo com nossa sensibilidade, essa sensibilidade que depende da estrutura do nosso corpo e da nossa alma.”

“MAGOAR alguém é transferir para outrem a degradação que temos em nós.”

“A beleza é a harmonia entre o acaso e o bem.”

“ATENÇÃO é a forma mais rara e pura de generosidade.”

‘Quando dois seres que não são amigos estão perto um do outro não há encontro, e quando amigos estão distantes não há separação.”

“O mais alto êxtase é a mais completa atenção.”

Simone WEIL foi uma pensadora francesa, pacifista e militante de esquerda nascida em Paris, cujas ações mostraram uma vida dedicada a busca pela justiça. Descendente de uma família judia abastada e culta, estudou filosofia na École Normale Superieure, exerceu o magistério e colaborou em jornais de esquerda. Também trabalhou como operária numa fábrica de automóveis (1934 -1935), passando a seguir a militar em movimentos anarquistas, inclusive participando com os republicanos na guerra civil espanhola (1936-1938), sem empunhar armas por causa de princípios pacifistas.

A partir de então (1938) passou a defender uma prática mística, o existencialismo cristão na linha de Kierkegaard. De volta à França, passou por Marselha e depois por Paris, onde passou a colaborar em jornais ligados à Resistência. Viajou pelos Estados Unidos (1942) e logo depois voltou a Londres, onde continuou sua luta contra o nazismo. Morreu em virtude de uma greve de fome em apoio a seus conterrâneos, em Ashford, Inglaterra. Seus principais textos foram publicados postumamente, como nas coletâneas La Pesanteur et la grâce (1947), L’Enracinement (1949) e Oppression et liberté (1963).

Destaque

Flores do mais

ana cristina cesar

devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

Destaque

“Quanto menos entendemos, mais julgamos”

“Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentimentos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra “pensar” que significa “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar das doenças pelas quais padece.”
– Mia Couto, em interinvenções “Quebrar armadilhas”, do livro “E se Obama fosse africano?: e outras interinvenções / Ensaios”. Lisboa: Editorial Caminho, 2009.

“Quebrar armadilhas” interinvenção de Mia Couto no Congresso de Leitura COLE, em Campinas/SP, no ano de 2007. O COLE homenageou naquele ano o poeta Ferreira Gullar. A conferência foi publicada no livro de ensaios “E se Obama fosse africano?: e outras intervenções / Ensaios” (2009).

Quebrar armadilhas

[…] Eu sou um poeta e sinto-me feliz pelo facto de a poesia atuar como estrela inspiradora para um encontro desta natureza. A poesia prova assim não ser apenas um gênero literário, mas um olhar revelador de mistérios e uma sabedoria resgatadora da nossa profunda humanidade. A poesia é um modo de ler o mundo e escrever nele um outro mundo. Buscar iluminação na voz de um poeta já é um primeiro quebrar de armadilhas.

[…] Compete-nos desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário. Todos queremos um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito pouco de mundo. A isso chamaram de utopia. Sabendo que esta palavra contém já uma cilada. A palavra “utopia”, que vem do grego, quer dizer o “não-lugar” (em contraponto com o lugar concreto que é o nosso mundo real). Mas eu não estaria fazendo poesia se dissesse que, nas condições de hoje, aconteceu uma curiosa inversão: o chamado mundo real é aquele que se apresenta como um verdadeiro não-lugar, um lugar vazio onde cabemos apenas como ilusão virtual. Não sei se poderemos chamar de lugar ao território onde vivemos uma vida que nunca chega a ser nossa e que, cada vez mais, nos surge como uma vida pouco viva. […]

A leitura é o propósito que aqui nos junta. Nós queremos todos que se promova a leitura e se valorize o livro. E eu queria falar exactamente da palavra “ler”. Muitas vezes pensamos a nossa língua como algo que sempre existiu e que sempre existiu tal como a conhecemos hoje. Mas as palavras nascem, mudam de rosto, envelhecem e morrem. É importante saber onde nasceu cada uma delas, conhecer-lhe os parentes e saber do namoro que a fez nascer. Entender a origem e a história das palavras faz-nos ser mais donos de um idioma que é nosso e que não apenas dá voz ao pensamento como já é o próprio pensamento. Ao sermos donos das palavras somos mais donos da nossa existência.

A palavra “ler” vem do latim legere e queria dizer “escolher”. Era isso que faziam os antigos romanos quando, por exemplo, seleccionavam entre os grãos de cereais. A raiz etimológica está bem patente no nosso termo “eleger”. Ora o drama é que hoje estamos deixando de escolher. Estamos deixando de ler no sentido da raiz da palavra. Cada vez mais somos escolhidos, cada vez mais somos objecto de apelos que nos convertem em números, em estatísticas de mercado.

A armadilha do idioma é já um primeiro tropeço no caminho para chegarmos aos outros e a nós mesmos. Pensamos na nossa língua mas não pensamos essa mesma língua. Do mesmo modo, deixamos de ler a nossa própria língua. E porque deixamos de ler somos surpreendidos por ausências e desfasamentos. Conceitos e categorias que nos parecem inocentes e universais não se apresentam universalmente do mesmo modo. Eu vivo num país, Moçambique, em que se costuram várias fronteiras interiores. São fronteiras de culturas, línguas, etnias, religiões. Esse convívio com a diversidade me obriga a revisitar palavras e conceitos que me parecem impensadamente globais. E vou aprendendo coisas curiosas. Por exemplo, vou sabendo de pais que são tios, de tias que são mães, de primos que são irmãos. Tudo isto porque as relações de parentesco não podem ser traduzidas com a facilidade de um assunto técnico. E vou sabendo de leões que, afinal, são pessoas, de crocodilos que são animais de alguém, de pessoas que, depois da morte, renascem em perdizes, em leopardos, em morros de muchém.

As armadilhas de dentro

A nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que separa os “bons” dos “maus” é sempre a mais imediata. Quanto menos entendemos, mais julgamos.
A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental.

Escolhi falar dessas ratoeiras interiores que nos convertem em nómadas deambulando entre ecos e sombras.

A armadilha da realidade

Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de “realidade”. Falo, é claro, da ideia de realidade que actua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de “razão”, outros de “bom-senso”. A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que a levar tão a sério.

Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: “Eu desvalorizei as paredes”. Essa lição se converteu num lema da minha conduta.

Ho Chi Minh ensinou a si próprio a ler para além dos muros da prisão. Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentidos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra “pensar” que significava “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência, recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crítica. Significa fazermos com a nossa vida quotidiana aquilo que fizemos neste congresso que é deixar entrar a luz da poesia na casa do pensamento.

A armadilha da identidade

A mais perigosa armadilha é aquela que possui a aparência de uma ferramenta de emancipação. Uma dessas ciladas é a ideia de que nós, seres humanos, possuímos uma identidade essencial: somos o que somos porque estamos geneticamente programados. Ser-se mulher, homem, branco, negro, velho ou criança, ser-se doente ou infeliz, tudo isso surge como condição inscrita no ADN. Essas categorias parecem provir apenas da Natureza. A nossa existência resultaria, assim, apenas de uma leitura de um código de bases e nucleótidos.

Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é não ter natureza nenhuma. Com isso ela combatia a ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino programado nos cromossomas, mas a realização de um ser que se constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente.

A imensa felicidade que a escrita me deu foi a de poder viajar por entre categorias existenciais. Na realidade, de pouco vale a leitura se ela não nos fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não nos deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos, outras vozes.

A questão não é apenas do domínio de técnicas de decifração do alfabeto. Trata-se, sim, de possuirmos instrumentos para sermos felizes. E o segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades. É fácil sermos tolerantes com os que são diferentes. É um pouco mais difícil sermos solidários com os outros. Difícil é sermos outros, difícil mesmo é sermos os outros.

A armadilha da hegemonia da escrita

Uma terceira armadilha é pensar que a sabedoria tem residência exclusiva no universo da escrita. É olhar a oralidade como um sinal de menoridade. Com alguma condescendência, é usual pensar a oralidade como património tradicional que deve ser preservado. O culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade.

Certa vez, um menino de rua em Maputo veio-me devolver um livro que ele vira nas mãos de uma estudante à saída da escola. Notando a minha fotografia na capa, esse menino acreditou que a estudante me tinha roubado o livro.

Me comoveu esse menino que atravessou a cidade para me devolver algo que, no entender dele, me pertencia. Mas o que ele me entregava era mais do que um objecto. Ele me entregava a inquietação profunda, a interrogação: a quem pertence realmente um livro? Ele é nosso porque o adquirimos, sim. O livro deve ser objecto e mercadoria para chegar às nossas mãos. Mas só somos donos desse objecto quando ele deixa de ser objecto e deixa de ser mercadoria. O livro só cumpre o seu destino quando transitamos de leitores para produtores do texto, quando tomamos posse dele como seus co-autores.

A mais importante linha divisória em Moçambique não é tanto a fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas a fronteira entre a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A absoluta maioria dos 20 milhões de moçambicanos vive e funciona num tipo de racionalidade que tem pouco a ver com o universo urbano. Mas em Moçambique, como no resto do mundo, a lógica da escrita instalou-se com absoluta hegemonia. Nesses casos, pressupostos filosóficos do mundo rural correm o risco de ser excluídos e extintos. Algumas das ideias que venho defendendo nesta comunicação estão claramente presentes na epistemologia da ruralidade africana.

A concepção relacional da identidade, inscrita no provérbio: “Eu sou os outros”; a ideia de que a felicidade se alcança não por domínio mas por harmonias; a ideia de um tempo circular; o sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos: todos estes conceitos constam da rica cosmogonia rural africana.

É evidente que não se pode romantizar esse mundo não urbanizado. Ele necessita de enfrentar o confronto com a modernidade. O desafio seria alfabetizar sem que a riqueza da oralidade fosse eliminada. O desafio seria ensinar a escrita a conversar com a oralidade.

Não são só os livros que se lêem

Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.

Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o acto de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?

Lembrei aqui o episódio do menino de rua porque tudo começa aí, na infância. A infância não é um tempo, não é uma idade, uma colecção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.

A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.

Recordo-me de que a guerra tinha deflagrado no meu país e o meu pai me levava a passear por antigas vias-férreas à procura de minérios brilhantes que tombavam dos comboios. Em redor, havia um mundo que se desmoronava mas ali estava um homem ensinando o seu filho a catar brilhos entre as poeiras do chão. Essa foi uma primeira lição de poesia. Uma lição de leitura do chão que todos os dias pisava. Meu pai me sugeria uma espécie de intimidade entre o chão e o olhar. E ali estava uma cura para uma ferida que eu não saberei nunca localizar em mim, uma espécie de memória de alguém que viveu em mim e fechou atrás de si um cortinado de brumas.

Pois eu vivo praticando a lição de leitura do meu pai que promove o chão em página. E estou aplicando o ensinamento de Ho Chi Minh que despromove a prisão em possibilidade de página. Deste modo aprendendo algo que sei que nunca chegarei a saber.

Enquanto escrevia o meu romance O último voo do flamingo viajei pelo litoral do sul de Moçambique à procura de mitos e lendas sobre o mar. Mas tal não aconteceu. Dificilmente havia histórias ou lendas. O imaginário destes povos pertencia invariavelmente à terra firme. Apesar de habitarem o litoral, os seus sonhos moravam longe do oceano.

Aos poucos fui entendendo — aquelas zonas costeiras eram habitadas por gente que chegou recentemente à beira-mar. São agricultores-pastores que foram sendo empurrados para o litoral. A sua cultura é a da imensidão da savana interior. Em suas línguas não existem palavras próprias para designar barco. O pequeno barquinho toma o nome a partir do inglês — bôte. O navio grande é chamado de xitimela xa mati (literalmente, “o comboio da água”). O próprio oceano é chamado de “lugar grande”. Pescar diz-se “matar o peixe”. Deitar a rede é “peneirar a água”. As armadilhas de pesca são construídas à semelhança daquelas usadas na caça. Os territórios de colecta de mariscos na praia são parcelados e sujeitos a pousio, exactamente como se faz nos terrenos agrícolas. Ao contrário do que sucede no centro e no norte de Moçambique, estes povos pescam sem serem pescadores. São lavradores que também colhem no mar. O seu assunto continua sendo a semente e o fruto. Os seus sonhos moram em terra e os deuses viajam pela chuva.

Nós estamos todos como esses povos que desconheciam a relação com o mar. O chamado “progresso” nos empurrou para uma fronteira que é recente, e olhamos o horizonte como se fosse um abismo sem fim. Não sabemos dar nome às coisas e não sabemos sonhar neste tempo que nos cabe como nosso. Os nossos deuses dificilmente têm moradia no actual mundo.

Mas é exactamente nesse espaço de fronteira que estamos aprendendo a ser criaturas de fronteira, costureiros de diferenças e viajantes de caminhos que atravessam não outras terras mas outras gentes. A poesia de Gullar deu mote a este encontro. O poeta Gullar defende que a poesia tem por missão desafiar o impossível e dizer o indizível. O que o poeta faz é mais do que dar nome às coisas. O que ele faz é converter as coisas em aparência pura. O que o poeta faz é iluminar as coisas. Como nos versos com que encerro:

Toda coisa tem peso:

uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,
a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.

– Mia Couto, extrato da conferência “Quebrar armadilhas”, no livro “‘E se Obama fosse africano?: e outras interinvenções/Ensaios”. Lisboa: Editorial Caminho, 2009; Companhia das Letras, 2011.

‘Quanto menos entendemos, mais julgamos’ – Mia Couto – Revista Prosa Verso e Arte

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Assim eu vejo a vida

Cora Coralina

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
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Mulher da Vida

Cora Coralina


Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.

Foto por Crina Doltu em Pexels.com
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Os Homens Ocos – T.S. Eliot

Os Homens Ocos (T. S. Eliot) Nós somos os homens ocos Os homens empalhados Uns nos outros amparados O elmo cheio de nada. Ai de nós! Nossas vozes dessecadas, Quando juntos sussurramos, São quietas e inexpressas Como o vento na relva seca Ou pés de ratos sobre cacos Em nossa adega evaporada Fôrma sem forma, […]

Os Homens Ocos – T.S. Eliot
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Strange Fruit

Abel Meeropol*

Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black body swinging in the Southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolia sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh!

Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.

* Abel Meeropol foi um compositor e poeta norte-americano. Seu trabalho mais conhecido, Strange Fruit, um poema anti-linchamento, foi gravado por Billie Holiday e interpretado por outros artistas como Nina Simone. Também tornou-se célebre por escrever músicas para artistas como Frank Sinatara e Josh White. Escreveu a maior parte de seu trabalho sob um pseudônimo, Lewis Allen, em homenagem aos seus dois filhos natimortos. Faleceu em outubro de 1986.

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Nossas asas no anis

Hoje é o dia mais triste de nossa história.

Quem não se comove com a maior de todas as tragédias brasileiras e não fez todo o possível para evitá-la não tem coração. Tudo isso para aumentar: o lucro de empresas farmacêuticas e a propina para este desgoverno. São todos assassinos, são monstros.

Talvez vocês consigam transformar sua dor, seu luto, nosso abismo em algo: em desabafo, em gritos, em palavras. Dizer o indizível, olhar de frente nossa miséria, a miséria humana, dói, dói muito, mas não dizer e não olhar dói muito mais.

Quantos versos conseguimos escrever com as letras da palavra “assassinos”?

Si
Só sai,
insana sina 
o asno insano assa as asas sãs
assina só os nossos ossos ansiosos, sósias

Os sóis não são só isso?

No sono, nos sinos, nos sinais, a sós nossa sina
no sono, o siso sana nossos anos insossos!
Nos sinos, os Sis, os Sóis
os Sons são asas
Os sinais?
Nos oásis, saias são nossas asas no anis.





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Faz da tua casa uma festa!

Cora Coralina

Faz da tua casa uma festa! 
Ouve música, canta, dança...
Faz da tua casa um templo!
Reza, ora, medita, pede, agradece...
Faz da tua casa uma escola!
Lê, escreve, desenha, pinta, estuda, aprende, ensina...
Faz da tua casa uma loja!
Limpa, arruma, organiza, decora, muda de lugar, separa para doar...
Faz da tua casa um restaurante!
Cozinha, prova, cria, cultiva, planta...
Enfim...
Faz da tua casa
Um local criativo de amor.


Foto por fauxels em Pexels.com
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Ainda assim eu me levanto- Maya Angelou

Você pode me inscrever na História
Com as mentiras amargas que contar,
Você pode me arrastar no pó
Mas ainda assim, como o pó, eu vou me levantar.

Minha elegância o perturba?
Por que você afunda no pesar?
Porque eu ando como se eu tivesse poços de petróleo
Jorrando em minha sala de estar.

Assim como lua e o sol,
Com a certeza das ondas do mar
Como se ergue a esperança
Ainda assim, vou me levantar

Você queria me ver abatida?
Cabeça baixa, olhar caído?
Ombros curvados com lágrimas
Com a alma a gritar enfraquecida?

Minha altivez o ofende?
Não leve isso tão a mal,
Porque eu rio como se eu tivesse
Minas de ouro no meu quintal.

Você pode me fuzilar com suas palavras,
E me cortar com o seu olhar
Você pode me matar com o seu ódio,
Mas assim, como o ar, eu vou me levantar

A minha sensualidade o aborrece?
E você, surpreso, se admira,
Ao me ver dançar como se tivesse,
Diamantes na altura da virilha?

Das chochas dessa História escandalosa
Eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor
Eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irriquieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.

Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara
Eu me levanto
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto!

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Poética da Pós-Modernidade

Que nossas palavras estranguladas
reflitam a falsa liberdade de nosso tempo insensível!
Deixemos, para os iluminados
que bailam na cadência frenética
desta época esquiva, as palavras em liberdade!
Nossos versos serão os dos excluídos e seus limites.
Constrangidos por infinitas serpentes
e injustiçados por inúmeros crimes,
não fingiremos que somos leves pássaros.
Contudo esta camisa de força poética
Sempre será um ato de devoção
e uma ação política.
Então, com pústula, verme e assassino,
escrevamos versos sublimes
Para provar que nosso sonho é possível!
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Nossas asas no anis

T. Godoy 04-05-2021

Si
Só sai,
insana sina 
o asno insano assa as asas sãs
assina só os nossos ossos ansiosos, sósias

Os sóis não são só isso?

No sono, nos sinos, nos sinais, a sós nossa sina
no sono, o siso sana nossos anos insossos!
Nos sinos, os Sis, os Sóis
os Sons são asas
Os sinais?
Nos oásis, saias são nossas asas no anis.





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Abismos

Ser o que vocês sonharam para nós
Está nos rasgando em pequenos pedaços

E, em nossa estrada, em cada curva se estendem
As cruzes de seu passado mal resolvido,
Até onde nosso olhar alcança …

Tentar nos esquivar do inevitável,
Está nos dilacerando membro por membro…

Oh criador, contemple suas criaturas
Perceba nossa imobilidade por coisas vazias
Somos assépticos
Somos ascetas
¬- Assim, nada, nada pode dar errado!

Recolhemos nossos sorrisos barulhentos
Para evitar tantas ameaças à nossa pureza!
Nós nos deitamos num altar de sacrifícios
Pela nossa e por todas as gerações anteriores a nós.
Vocês precisaram dessa hecatombe
E nós aceitamos por nossa bondade.

Vivemos nas montanhas…
É o preço a pagar por nossa limpeza.
Permanecemos nas rochas inacessíveis
Aonde ainda podemos morar sem cair nos abismos.
Lá embaixo um oceano nos observa e espera…

Godoy

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Poeta obscuro

Imaginei como seria um poema escrito por meu pai em homenagem a Carlos Bueno Guedes e Federico Garcías Lorca, ambos artistas presos por regimes totalitários que esmagam pessoas idealistas e temem em excesso perigosos poetas.

Infelizmente, meu pai faleceu e não teve oportunidade de conhecer a história de Carlos, seu teatro, seus milhares de poemas e nenhum livro publicado ainda, um poeta torturado pelo regime militar no Brasil.

Fico imaginando que meu pai e o Sr. Carlos poderiam ter se tornado grandes amigos, se os seus caminhos pelo mundo tivessem se cruzado e esse encontro hipotético de dois idealistas inspiraria um poema, talvez semelhante a este.

Poeta obscuro,

Eu vejo você quando chora à noite
Por seus sonhos perdidos
E em sua cela sozinho, deseja dormir
E talvez sonhar.
Eu vejo quando sente o peso das injustiças
Presentes e passadas, sem conseguir mais orar.
Eu vejo você quando quer braços quentes
E abraça o vazio.
Vejo seus ombros caídos de tanto lutar.
Vejo o desespero em seus olhos nas horas fatais.
Sinto sua vertigem,
Quando o ponto sem retorno avança sutil.
Sei que você sabe que as tiranias
Sempre vão longe demais,
Não suportam alegria
E condenam ideais.
Vejo seu coração quando um obtuso pelotão
Se prepara para atirar.

Manir de Godoy*

particular-0432

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Sonhos abortados

mais um Corpo ou só a fração de um Corpo
dividido, subdividido
uma perna
um tronco
um pes
co
ço.
Só um Corpo.

não maria, não josé
não um idoso
não um moço
um es
bo
ço.
O esTrondo meDonho de uma Onda de Lodo.
Só mais um Corpo.

não aquele boi morto,
boi morto
boi
que rola entre os escombros.
Mais um Corpo Só.

não um só corpo!
Só um Corpo sem passAdo sem futUro sem o sOpro
O abOrto de um sOnho
de
com
posto
pelos Engodos do Vale do Choro.

Só Matéria nos cômputos brutos dos Diários xucros.

Godoy

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Pessoa, meu amor

Pessoa, meu amor

 

Como declarar meu amor neste dia querido

em que você nos presenteou com o dom de sua vida?

Feliz aniversário, pessoa complicada e complexa!

“Louco porque também quis grandeza qual a sorte não dá.”

Você é o Encoberto também neste mesquinho mundo.

 

Quando voltará nosso messias da poesia?

Estamos órfãos de seus muitos eus.

Amado das musas, apesar de suas loucuras ou talvez por causa delas.

Foi nada, é todos, é tudo.

 

13-06-2018

Godoy

Fernando

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A mulher mais linda da cidade

O conto “A mulher mais bela da cidade”, de Bukowski, é horrível e belo, como seus personagens. Ainda estou digerindo porque é muito impactante.  Agora percebo que alguns amigos da faculdade imitavam esse autor. Eu me pergunto por que demorei tanto para ler as obras dele. Acho que tinha medo de conhecer esse mundo, ou submundo, como dizem. Não gosto dessa palavra, submundo. Essa associação com o inferno me parece injusta, já que alguns personagens desse universo apenas tiveram muito azar na vida. Outro motivo de nunca ter lido era a fama que os textos dele têm de serem escatológicos, o que me enojaria bastante se lesse, mas esse não é muito.

O conto parece uma releitura marginal do conto de fadas “A Bela e a Fera” pois o tema da beleza externa e da beleza interior é o mesmo, contudo com uma visão totalmente diferente e menos convencional sobre o assunto. O conto apresenta o momento em que o narrador, um homem feio, conhece a mais bela jovem local, a qual se mutila para ficar feia pois quer que gostem dela por outros motivos e não apenas porque querem fazer sexo com ela. A bela não gosta de homens bonitos, pois são só belos e mais nada. O narrador crê que, um dia, um homem irá destruí-la, e gostaria que não fosse ele mesmo. Os episódios com cenas de sexo são bonitos, comoventes e decadentes, bem diferente do que eu imaginava.  O final é terrível, de arrepiar. A condição da mulher é uma droga mesmo, e o narrador-personagem sabe que ele faz parte do problema, mas nada pode ser feito para mudar isso pois ele não podia prever as consequências de seus atos e de suas palavras. Não é conformismo,  nem alienação, mas sim uma tragédia humana, como nas tragédias gregas, a personalidade do herói em conflito com o estado de coisas, leva-o, inexoravelmente, ao abismo. Enfim, as belas também sofrem, pois não querem ser só belas, ou como dizem vulgarmente por aí apenas “alguém comível”, ou pior ainda, como disse Bolsonaro “uma mulher feia não merece ser estuprada”. Sejamos todas o mais feias possível, então, por proteção46ba30737ea90eda.

 

Destaque

Leitura ostentação

Acabei de adquirir Crônica de um amor louco: ereções, ejaculações, exibicionismos – Parte I, do Bukowski. Exibicionismo é a cara da nossa era e não posso ficar de fora, então aí está. Não acredito que só agora resolvi ler sua obra. Vamos ver se é um livro “maldito” mesmo ou um maldito livro. É provável que seja as duas coisas. Já vou tomar um dramin antes, por via das dúvidas. Depois de ler, farei uma resenha, se alguém estiver interessado na obra do “Velho Safado”* ou na droga da minha opinião (já estou ficando com o jeitão dele).

*  Essa expressão maldosa não é minha, é como Bukowski ficou conhecido no meio literário.

Primeiro conto: A mulher mais linda da cidade

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Embriague-se

Charles Baudelaire

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: É hora de embriagar-se!

Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso. Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.

27. vinho

 

Destaque

À Palestina,

o sangue, que jorra das veias de seu povo,

é esquecido, é ignorado

até quando fingiremos que tudo é normal?

até quando viraremos as costas àqueles que sofrem

de um grande mal?

“assim caminha a humanidade”, uns dizem.

outros permanecem calados,

enquanto seus filhos se esquivam da morte sem

saber se seus passos serão lembrados

todos eles serão só números quantificados?

alguns ainda virarão dissertação ou teses de doutorado,

mas sem nome, sem lar

nem água nem chão,

todos seus filhos serão

prisioneiros em seu próprio torrão?

e todos nós sem a vergonha de deixar

que isso aconteça a um irmão?

12-07-2012
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Na Palestina: O velho, a árvore, o ônibus

À Abd Al-Hasib Atta Zaloum

Sobre o solo, jaz a carcaça do que um dia havia sido um ônibus.
Hoje, tornou-se abrigo do velho sem moradia.
As estrelas no céu velam por eles à noite.
O frio passa pelas vidraças estilhaçadas,
Vem sorrateiro seu rosto açoitar.

Sob o sol escaldante,
a sombra vem de uma árvore solitária.
O ônibus à noite e a árvore de dia
São todo o seu reino, como nem
o rei da Jordânia tem.

Assim que ficou pronta,
sua antiga casa foi demolida;
sua terra, por colonos, roubada.
Converteram seu território em "área de segurança".

Segurança pra quem,
se o velho agora vive ao relento?
Não é o velho, de humanos, rebento?
Não necessita de segurança também?
É menos humano que as crianças da escola
atrás daquela muralha, já que delas só recebe desdém?

Como a vida, que poderia ter tido, foi interrompida,
Perdeu sua costumeira esperança
e neste solo devastado só quer plantar seus olhos cansados
Para não verem mais a guerra assolar o seu lar.




Dias de Poesia

Exército israelense ataca judeus ortodoxos

“Preferimos morrer e não nos juntarmos ao exército sionista israelense”

Na segunda-feira, 26 de fevereiro, a polícia israelense em Jerusalém entrou em confronto com judeus ortodoxos que protestavam contra o serviço militar obrigatório. Muitos foram agredidos e presos por não concordar com os ataques à população civil de Gaza.

https://x.com/TheodorCarvalho/status/1762987435753902570?s=20

O calor tem cor e tem classe

Thiago Amparo na Folha/UOL

Está calor? Sim. Para todo mundo de forma igual? Não. Quantos aparelhos de ar-condicionado ou umidificador de ar você tem em casa? Em SP, apenas 210 das 5.600 escolas da rede estadual possuem sistema de refrigeração (3,7%), segundo dados oficiais; em 12 escolas em Guarulhos as paredes e telhas são de chapa de aço, superaquecidas. Você trabalha ao ar livre sob o sol ou em lugares fechados sem proteção ao calor? Você tem descanso remunerado ou possui flexibilidade de horário?

Você utiliza um transporte de qualidade, confortável e refrigerado todos os dias? Na capital paulista a média de deslocamento pela cidade é de 2h26min; em 2023, a percepção de que os ônibus estão mais cheios chegou a 27%, maior índice registrado em cinco anos pela pesquisa da Rede Nossa São Paulo. Ilhas de calor em SP, agravadas pela poluição automobilística e pela distribuição desigual de mobilidade urbana impactam mais pessoas periféricas, revelou nesta semana estudo do Instituto Peregum.

Você mora perto de um parque para se refrescar? Há 11 anos, moradores do extremo sul da periferia de SP esperam pela regulamentação do Parque dos Búfalos, em uma disputa que envolve até ameaça de morte, revelou esta Folha. Ao menos, outros quatro parques prometidos foram abandonados ou invadidos na periferia de SP, segundo o jornal Agora, em novembro de 2021. Quantas pessoas moram em sua casa por cômodo, e há circulação de ar em todos eles?

Você tem acesso a água potável em abundância? Populações negras de Belém e de Recife são as que mais sofrem de doenças transmitidas pela água (mais de 60% dos casos), revelou pesquisa do Instituto Pólis de 2022. Você ficará seguro no evento de chuvas extremas? Mesma pesquisa relevou que na capital paulista a proporção de pessoas negras em áreas passíveis de deslizamento é de 55%, concentradas nas periferias da cidade.

O calor extremo expõe ao sol as injustiças —racismo e aporofobia— climáticas. Neste que é o verão mais frio do resto de nossas vidas, está calor para quem?

Como vivemos o luto?

A sociedade tem abandonado seus rituais referentes ao luto; como isso tem afetado nossa saúde mental? O psicanalista Christian Dunker em seu livro “Lutos finitos e infinitos” trata sobre o luto individual e coletivo e constata que há algo errado na forma como vivenciamos a experiência da dor. Leia no link abaixo sua entrevista sobre esse tema que apesar de ser tão relevante, é camuflado no modo de vida contemporâneo:

https://oglobo.globo.com/saude/bem-estar/noticia/2023/08/27/algo-esta-errado-na-maneira-como-temos-feito-o-luto-diz-psicanalista-christian-dunker.ghtml

O sétimo selo

Quando coisas ruins acontecem com pessoas boas

Jó precisava de simpatia mais que de conselho, por mais sensato que fosse o conselho. Haveria tempo e lugar para este último. Precisava de compaixão, da sensação de que outros participam também de sua dor, mais que de explicações teológicas sobre os caminhos de Deus. Precisava de conforto físico, de pessoas que partilhassem sua força com ele, sustentando-o em vez de condená-lo. Precisava de amigos que lhe permitissem zangar-se, chorar e desabafar alto, muito mais que de amigos que o concitassem a tornar-se um exemplo de paciência e piedade para os outros. Precisava de alguém que dissesse “Sim, o que aconteceu é terrível e não faz sentido” e não para dizer-lhe “Coragem, Jó, afinal de contas não é tão ruim”. E foi aí que os amigos falharam. A expressão “consoladores de Jó” passou a designar pessoas que desejam ajudar, porém que se mostram tão preocupadas com suas próprias necessidades e sentimentos que acabam por piorar as coisas. Contudo, os amigos de Jó sob dois aspectos procederam bem.

PEm primeiro lugar, eles vieram. Estou certo de que a visão do amigo na miséria lhes era dolorosa e de que eles provavelmente tiveram vontade de afastar-se e deixá-lo só. Não é agradável ver um amigo sofrer, e a maioria de nós evita de bom grado essa experiência. Ou nos afastamos de todo, de modo que quem sofre acaba por ficar isolado, com o sentimento de rejeição coroando sua tragédia, ou nos aproximamos como que evitando a razão de nossa presença ali. As visitas a hospitais e manifestações de condolências transformam-se em conversas amenas sobre o tempo, a bolsa de valores ou as notícias esportivas, assumindo um ar de irrealidade em que a preocupação mais importante no espírito de todos os presentes é deixada de lado. Os amigos de Jó pelo menos tiveram a coragem de encará-lo e enfrentar sua dor.

E, em segundo lugar, eles ouviram. Segundo o relato bíblico, sentaram-se com Jó durante muitos dias, sem nada dizer, enquanto Jó extravasava sua dor e cólera. Esta, acho eu, foi a parte mais útil da visita. Nada do que eles fizeram depois fez tanto bem a Jó. Depois de Jó haver desabafado, eles deveriam ter dito “Sim, é realmente terrível. Não sabemos como você pode suportá-lo”, em vez de se sentirem compelidos a defender Deus e a sabedoria convencional. Sua presença silenciosa deve ter sido bem mais útil ao amigo do que as longas explicações teológicas.

Podemos extrair disto uma grande lição. Há alguns anos passei por uma experiência que me ensinou alguma coisa sobre como as pessoas pioram uma situação por se censurarem a si mesmas. Certo mês de janeiro, eu tive de oficiar aos funerais, em dias sucessivos, de duas senhoras idosas de minha comunidade. Ambas morreram “cheias de dias”, como diria a Bíblia; ambas sucumbiram ao desgaste normal do organismo, depois de uma vida longa e bem vivida. Calhou de as duas casas serem próximas, de modo que pude fazer as visitas de condolências às duas famílias na mesma tarde. Na primeira casa, o filho da falecida me disse: “Se eu tivesse mandado minha mãe para a Flórida, tirando-a deste frio e desta neve, ela ainda estaria viva. Sinto-me culpado pela sua morte.” Na segunda casa, o filho da outra disse: “Se eu não tivesse insistido com minha mãe para que fosse para a Flórida, ela ainda estaria viva. A longa viagem de avião, a mudança súbita de clima foram além do que ela podia suportar. Sinto-me culpado pela sua morte.”

Quando as coisas não se desenrolam conforme gostaríamos, torna-se muito tentadora a ideia de que, se tivéssemos procedido de maneira diferente, a história teria tido um final mais feliz. Os pastores de alma sabem que, toda vez que ocorre uma morte, os sobreviventes se sentem culpados. Como a ação que empreenderam teve um desfecho desagradável, acreditam que, se tivessem feito o contrário — mantendo a mãe em casa, adiando a operação — o final seria melhor. Afinal de contas, como se poderia ter evitado o pior? Os sobreviventes sentem-se culpados por estarem ainda vivos enquanto um ser amado está morto. Sentem-se culpados ao pensarem nas palavras amáveis que nunca dirigiram a quem morreu ou pelas coisas boas que não encontraram tempo para propiciar-lhe. Na verdade, muitos dos rituais fúnebres em todas as religiões visam a ajudar os sobreviventes a libertarem-se desses sentimentos irracionais de culpa por uma tragédia que de fato não foi provocada por eles. O sentimento de culpa — “eu sou o culpado” — parece universal. Parecem existir dois sentimentos envolvidos em nossa inclinação para a culpa.

O primeiro é nossa compulsiva necessidade de acreditar que o mundo faz sentido, que há uma causa para cada efeito e uma razão para tudo o que acontece. Isto nos leva a encontrar padrões e conexões tanto onde eles realmente existem (o cigarro ocasiona o câncer pulmonar; quem lava as mãos tem poucas doenças contagiosas) quanto onde eles existem apenas em nossas mentes (meu time vence toda vez que vou ao estádio com a camisa da sorte; aquela pessoa de quem eu gosto só me vê nos dias ímpares, nunca nos dias pares, a não ser quando um feriado interrompe a sequência). Quantas superstições comuns e pessoais nasceram baseadas em que algo de bom ou ruim sucedeu logo depois de termos praticado uma ação, originando-se daí a crença de que o mesmo ocorrerá sempre que seguirmos aquele padrão de comportamento?

O segundo elemento é a noção de que nós somos a causa do que acontece, especialmente das coisas ruins. Parece muito curta a distância entre a crença de que tudo tem uma causa e a crença de que todo desastre é culpa nossa. As raízes deste sentimento podem estar em nossa infância.

Os psicólogos falam do mito infantil da onipotência. O bebê pensa que o mundo existe para satisfazer as suas necessidades e que é ele quem faz com que tudo se realize. Ele acorda pela manhã e convoca o resto do mundo para suas tarefas. Chora, e alguém vem atendê-lo. Quando está com fome, alguém vem alimentá-lo; quando está molhado, aparece alguém para trocar-lhe as fraldas. Muito frequentemente, não superamos totalmente esta noção infantil de que nossos desejos fazem as coisas acontecerem.

Uma parte de nossa mente continua a acreditar que as pessoas ficam doentes porque as odiamos. Nossos pais, de fato, amiúde alimentaram essa noção. Sem perceberem como eram vulneráveis nossos egos infantis, descarregaram sobre nós seu cansaço e frustração por razões que nada tinham a ver conosco.

Empurraram-nos por nos encontrarmos em sua passagem, gritaram conosco pelos brinquedos espalhados ou pelo som alto da televisão, e nós, em nossa inocência infantil, achávamos que eles tinham razão e que nós éramos o problema. A raiva deles podia passar no momento seguinte, mas nós carregaríamos ainda as cicatrizes do sentimento de culpa, com medo de sermos repreendidos por qualquer erro que aparecesse. Anos 34 depois, quando algo não vai bem ao nosso redor, os sentimentos de nossa infância emergem e instintivamente pensamos que mais uma vez deitamos as coisas a perder.

Mesmo Jó preferiu pedir que Deus lhe provasse sua culpa a admitir que tudo não passava de um engano. Se lhe pudesse ser demonstrado que ele merecia seu destino, então pelo menos o mundo estava certo. Não haveria qualquer prazer em sofrer pelos desmandos de alguém, mas seria mais suportável do que descobrir que se vive em mundo fortuito onde as coisas acontecem sem razão.

O segredo do quadrado de Sator

Alguma coisa fez com que o quadrado de Sator, um dentre tantos palíndromos utilizados como passatempo pelos romanos, fosse considerado especial. Ele foi muito copiado, em livros, portas etc, mas seu significado original se perdeu. Estudiosos tentam reencontrá-lo há 150 anos, sem chegar a nenhuma conclusão que seja universalmente aceita.

Minha tradução livre seria “Deus mantém a roda da vida girando.”