Bares, cafés e clubes, a partir do século XIX, não eram apenas um ambiente para a happy hour. Eles foram o cenário onde questões políticas, filosóficas, movimentos artísticos revolucionários se espalharam. O propósito deste site é o mesmo: criar um espaço virtual para expressão livre de ideais, reflexões e sentimentos, com espírito crítico em relação a nossa Cultura.
Alguma coisa fez com que o quadrado de Sator, um dentre tantos palíndromos utilizados como passatempo pelos romanos, fosse considerado especial. Ele foi muito copiado, em livros, portas etc, mas seu significado original se perdeu. Estudiosos tentam reencontrá-lo há 150 anos, sem chegar a nenhuma conclusão que seja universalmente aceita.
Minha tradução livre seria “Deus mantém a roda da vida girando.”
O sábio Frei Lourenço tenta alertar os jovens amantes para não se precipitarem, para cultivar a paciência, algo tão difícil para os jovens impulsivos. Hoje porém, com a velocidade da tecnologia e com os automatismos no uso de dispositivos eletrônicos, todos nós estamos sujeitos a rompantes, a gestos bruscos, impensados e impensáveis. Não existe mais um discreto Frei Lourenço para nos aconselhar. Temos a Literatura, pena que ninguém mais tenha paciência para a leitura, que deleita e ensina.
Quem sabe neste momento você não está apenas nascendo de novo para outra vida, trocando de roupagem?! Lutou o bom combate, agora descansará em paz! Sentiremos saudades!🌹
No filme, a personagem Paula Alquist, feita por Ingrid Bergman, é manipulada por seu marido a acreditar que está enlouquecendo
Por Ana Claudia Paixão Atualizado em 30 jul 2021, 15h40 – Publicado em 30 jul 2021, 14h00
Ingrid Bergman ganhou seu primeiro Oscar de Melhor Atriz, em 1944, com o filme À Meia-Luz, interpretando a personagem Paula Alquist. Nele, ela é manipulada por seu marido a acreditar que está enlouquecendo, o que quase acontece.
É sufocante ver o processo de distorção e maldade ao qual a personagem é submetida, sem poder reagir. O filme é espetacular, mas precisa de um pouco de paciência para encontrar nas plataformas, inclusive dá para assistir em Blu-Ray e DVD.
Ingrid divide as telas com Charles Boyer e Joseph Patten, dirigida por um preciso George Cukor. No original, À Meia-Luz se chama Gaslight, que, graças ao filme, é até hoje, mais de 80 anos depois, a tradução de um tipo de manipulação psicológica no qual uma pessoa consegue convencer a vítima a questionar a própria sanidade, memória ou percepções das coisas.
O manipulador induz à dúvida e – paradoxalmente – à certeza da loucura, acabando com autoestima e saúde mental da vítima indefesa.
Antes de ser referência pop, Gaslight tem uma explicação técnica. Em tempos de pré-eletricidade, para se ter luz só era possível à gás, que é o que Gaslight em inglês diz. Toda a metáfora de luz, de falha na iluminação e memória faz parte da narrativa, afinal o vilão age à noite, à meia-luz.
À Meia-Luz nasceu no teatro, em Londres, em 1938, e logo foi parar na Broadway com enorme sucesso. O primeiro filme, de 1940, se encontra com facilidade no YouTube.
Nesta versão, o destaque é o espetacular austríaco Anton Walbrook, que também brilhou em Sapatinhos Vermelhos, com roteiro fiel ao texto teatral e extremamente inteligente.
O sucesso dessa produção inspirou a MGM a comprar os direitos para realizar a versão americana, praticamente suspendendo a circulação do original britânico por muitos anos.
A versão de 1944 faz algumas adaptações da história, mas mantém a premissa original. Alguns consideram a melhor e devo concordar com sua superioridade, especialmente de Ingrid Bergman, brilhantemente frágil em um papel muito difícil.
À Meia-Luz chegou a ser indicado a oito categorias no Oscar, rendendo o primeiro de Melhor Atriz para Ingrid Bergman. Muitos consideram este um dos melhores filmes de George Cukor, um diretor detalhista que destacou com maior riqueza psicológica o processo sufocante e aterrorizador de manipulação. Tanto que, desde então, se alguém quer desacreditar outra pessoa, se diz que está “gaslighting”.
Vale muito a pena ver ambos os filmes para traçar as comparações, mesmo que fosse uma época em que as mulheres não tivessem voz. Com os dois filmes, entendemos o verdadeiro significado de “don’t gaslight me”, que quer dizer “não me faça parecer louca”. Em tempos de saúde mental, os clássicos ainda nos ensinam muita coisa.
Ai que tristeza! Eu costumava passar esta música para meus alunos, dentre muitas outras como Samba do Avião. Eu sempre preferia a interpretação dela a de todos os outros e queria que meus alunos a apreciassem como merece. Minhas aulas se tornaram muito melhores graças a esse talento sublime. Perdemos um tesouro inigualável. Tivemos muita sorte de ter vindo nesta terra tão carente de beleza e leveza. Obrigada por tudo e descanse em paz! Sentiremos saudades! Que sua passagem seja suave como as águas de Chovendo na Roseira. Te amarei pra sempre!
observo as linhas da minha mão correndo águas a linha do amor do dinheiro
qual será a linha da loucura
o rio de traços finos falhos tremidos que revelam a mente sã
ensandecida
qual será a linha da loucura na palma da minha vida
qual será a veia herdada vendo a marca infligida
qual será a linha louca que corta o rio da minha mão
da minha mãe por quem fui parida
doze horas em trabalho de partida só pra nascer com o carimbo da mão em linha enlouquecida
qual será essa loucura costurada essa linha desmedida essa palma bordada
eu olho os rios da minha mão e enlouqueço calada
alta ajuda
dizem que são necessários trinta dias para que um novo hábito se torne rotina
dizem que o problema é a gordura que o açúcar refinado na verdade que todo açúcar que as frutas também tudo faz mal
e dizem que yoga e pilates exposições gatos cães pássaros livres e nadar com os golfinhos não
a natureza se desequilibra assim como bambeamos movidos a ansiolíticos e cafeína
até mesmo os que dizem que a meditação os parques as longas caminhadas na praia a água de coco o óleo de macadâmias as escovas elétricas e o chás feitos das ervas tiradas do chão fazem bem
até mesmo os que dizem que todas as religiões que a tolerância o ecumenismo as missas de sétimo dia as velas os filmes nacionais os editais o apoio do governo a importância dos movimentos sociais
até mesmo os que dizem que a indústria o consumo as leis a punição até os que sentem pena
até eles dizem que trinta dias passam mas não habituam a vida em quem de nada faz questão .
Dora
nunca esqueço de Dora de sua paralisia sua cegueira sua oposição transformada em patologia
como os homens amam os códigos que catalogam a loucura feminina
e distribuem sintomas por cima dos hematomas e taças de sangria
em suas camas forradas com mentiras e blocos de papel onde escrevem cárceres onde descrevem leitos onde Dora e eu e todas nós devemos deitar em espera
nunca esqueço do caso de Dora da coragem sufocada por mãos livros por páginas escritas por homens como ele com números que são camisolas à força e que mais cedo ou mais tarde acabamos por vestir
porque em seus blocos camas poltronas em seus estetoscópios eles escutam a rebeldia
porque Dora e eu e todas nós nos fazemos ouvir
duas cadeiras conte para mim sobre como tudo anda difícil e nem a cerveja se paga e nem a escrita se cria me conte
sobre os imprevistos e as curvas fechadas sobre os livros abandonados as exposições vazias de significado
me fale sobre a rotina que esmaga com as palavras que sempre as mesmas se usa
e sobre a cidade cinza os rios espumantes o quilo de sal caro que se come me conte
sobre as temperaturas altas e os corações apáticos sobre as relações de supermercado os produtos políticos
eu quero ouvir sobre as pequenas vidas os pequenos instantes de vida que ainda resistem aí
.
contato
a mente doente tem traços e partes de imagens incompletas - dizem e a gestalt pode ajudar porém todos buscamos a cura rápida os comprimidos os laudos para que sejam validados os momentos piores mais eremíticos
porque todos estamos jogados ao nosso pessoal veredicto
sentamos em poltronas cara a cara com o incógnito e abrimos portas que libertam carcaças serpentes formigas na boca
somos ouvidos e punhos suados trocamos os olhos pela voz embargada
não você não queria você não estaria ali se não fosse esse buraco bem no meio chamativo
não se preenche morte com vida e talvez não exista conteúdo para a mente evacuada
mas tente sentar responder sobre pais divórcios sobre aquele tio que tocou ali onde se partiram as louças
tente juntar as imagens infantilmente
foi aqui aponte onde - nessa boneca loira aqui aqui
segura nas cordas vocais a vontade de correr a tentação carnal de abandonar-se ...
somos ouvidos
com os punhos suados mas nossos punhos escrevem a verdade do mundo a beleza civilizatória
há ainda um pouco que segura o peso você pode dormir e jogar com os pesadelos
mas levante-se deixe os olhos pousarem as pernas vão chacoalhar mas um dia cara a cara com um ser familiar os tendões terão descanso
tudo será outra coisa nada novo mas outra estrutura
uma casa com aldavras vedada aos tios limpa de estilhaços um chão onde esticar a coluna — chorar
e isso será mais do que fora
e isso será o mais próximo da cura
Jarid Arraes
Nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de Fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista, poeta e autora dos livros “Um buraco com meu nome“, “As Lendas de Dandara” e “Heroínas Negras Brasileiras“. Curadora do selo literário Ferina, atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Até o momento, tem mais de 60 títulos publicados em Literatura de Cordel.
Estes poemas, publicados na Mulheres que escrevem, foram escolhidos pela escritora, cordelista e poeta, Jarid Arraes, para não nos esquecermos do significado do Setembro Amarelo, mês que marca a campanha brasileira de prevenção ao suicídio, iniciada em 2015 em Brasília. É uma iniciativa do Centro de Valorização da Vida, do Conselho Federal de Medicina e da Associação Brasileira de Psiquiatria. Acreditamos que a escrita e a literatura têm um papel fundamental na conscientização e debate de questões tão importantes como esta. Caso precise de ajuda, não hesite, ligue para a CVV (188) ou procure a ajuda especializada. A saúde mental é um assunto sério e deve ser tratada com respeito e atenção. Agradecemos imensamente à Jarid Arraes por sempre abordar este tema com cuidado e seriedade.
Leia mais poemas, ensaios e entrevistas com a autora aqui: Mulheres que Escrevem entrevista Jarid Arraes "Eu quero que a gente olhe para essa feiura. Isso é sobre nós" medium.com
Três poemas de Jarid Arraes nós choramos, loucas de primeira viagem medium.com
Uma mulher negra escrevendo em busca de casa Resgatando um conti
Dança Hipnótica do clip do músico neozelandês Jonathan Bree, onde ele já utilizava máscaras antes da pandemia. Esta música do gênero indie toca no último episódio da série “Gold Girls” da Netflix. Extremamente estranho e por isso mesmo inovador.
No Vale Histórico Quem é lembrado? O sinhô Ou o escravizado? Viva quem chibatou Ou o chibatado? Quem comprou eu sei E quem foi comprado? "Um casarão de rei!" Feito em suor sangrado Sangue negro sagrado Sabor? Amargo Famílias findadas Amistad lotado Hoje: "vá embora" Ontem: "venha forçado" Angola, Benguela, Monjolo Criança, homem, moça Congo, Cabinda, Rebolo Todos vindo à força Onde cativeiro é lucro Sincretismo é fé Miscigenação? Estupro Tudo pelo café Séculos de labor Muita dor, sem ser pago E se a Lei Feijó vingar cruze os negros como gado Os últimos a abolir E de uma maneira torta No país da Lei de Terras A Lei Áurea nasce morta. "Livre" só de bens De herança o racismo Equidade é preciso Igualdade é cinismo Samba, comida e festa Cultura negra pro mundo "Me dá uma ajuda, sinhô" "Vai trabalhar, vagabundo" Onde preconceito é piada Falta uma que diz: O que é o que é um pontinho preto na fazenda? É um negro sustentando o país. ✊🏾
Amor – pois que é palavra essencial comece esta canção e toda a envolva. Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, reúna alma e desejo, membro e vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma? Quem não sente no corpo a alma expandir-se até desabrochar em puro grito de orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado, fundido, dissolvido, volta à origem dos seres, que Platão viu completados: é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo? Onde termina o quarto e chega aos astros? Que força em nossos flancos nos transporta a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris, já tudo se transforma, num relâmpago. Em pequenino ponto desse corpo, a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Eu gostaria de ser um ninho se você fosse um passarinho Eu gostaria de ser um lenço se você fosse um pescoço e estivesse com frio Se você fosse música, eu seria uma orelha Se você fosse água, eu seria um copo Se você fosse a luz, eu seria um olho Se você fosse um pé, eu seria uma meia Se você fosse o mar, eu seria uma praia E se você ainda fosse o mar, eu seria um peixe, e nadaria em você E se você fosse o mar, eu seria sal E se eu fosse sal, você seria alface, um abacate ou, pelo menos, um ovo frito E se você fosse um ovo frito, eu seria um pedaço de pão E se eu fosse um pedaço de pão, você seria manteiga ou geleia Se você fosse geleia, eu seria o pêssego na geleia Se eu fosse um pêssego, você seria uma árvore E se você fosse uma árvore, eu seria sua seiva e correria em seus braços como sangue E se eu fosse sangue, viveria em seu coração.
Já doente, Lobato não pôde comparecer ao comício do Pacaembu, em 15 de julho de 1945, que homenageou Prestes. Mas fez, de sua residência, por telefone, uma saudação ao líder comunista. Quando sua fala foi anunciada, pediu-se silêncio máximo. A voz grave do escritor foi ouvida no mais absoluto silêncio:
Tenho como dever saudar Luis Carlos Prestes porque sinceramente vejo nele uma grande esperança para o Brasil. Vejo nele um homem nitidamente marcado pelo destino. Vejo nele o único dos nossos homens que pelos seus atos e pelo amor ao próximo conseguiu elevar-se à altura de símbolo. Símbolo de quê? De uma mudança social. A nossa ordem social é um enorme canteiro em que as classes privilegiadas são as flores, e a imensa massa da maioria é apenas o esterco que engorda essas flores. Esterco doloroso e gemebundo. Nasci na classe privilegiada e nela vivi até hoje, mas o que vi de miséria silenciosa nos campos e cidades me força a repudiar uma ordem social que está contente com isso e arma-se até com armas celestes contra qualquer mudança. A nossa ordem social me é pessoalmente muito agradável, mas eu penso em mim mesmo se acaso houvesse nascido esterco. Essa visão da realidade brasileira sempre me preocupou e sempre me estragou a vida. Nada mais lógico, pois, do que meu grande interesse pelo homem que não conheço, mas acompanho desde os tempos em que um punhado de loucos lutava contra todo o poder do governo. E lutava por quê? Com que fim? Pela conquista do poder? Fácil seria isso, como foi para os companheiros que desandaram. Prestes não lutava por. Lutava contra. Contra quê? Contra a nossa ordem social tão conformada com o sistema do mundo dividido em flores e esterco. E pelo fato de sonhar com a grande mudança foi condenado a trinta anos de prisão, como pelo fato de sonhar um sonho semelhante, Jesus foi condenado a morrer na tortura. Os acontecimentos do mundo vieram libertar o nosso homem-símbolo e ei-lo hoje na mais alta posição a que um homem pode erguer-se em um país. Ei-lo na posição de força de amanhã. Na posição do homem que fatalmente será elevado ao poder e lá agirá para que o regime de flores e esterco se transforme em algo mais equitativo e humano.
Ontem, estava passeando pelo meu bairro com o Léo, meu cachorro e, de repente, me assustei ao me deparar com uma ave imensa comendo lixo de uma vizinha. Tal imagem me pareceu surreal, apesar de estar cada vez mais comum avistar tucanos, corujas e cobras por aqui.
Esse é o sinal mais explícito de que estamos invadindo mais e mais os espaços dessas espécies, por isso elas são obrigadas a se adaptar às regiões urbanas. Gestos simples, como colocar o lixo nos dias em que o caminhão de coleta passa, evitam a intoxicação de animais com nossos detritos. Mas a maioria das pessoas está c. e andando pra isso.
Fiquei intrigada para desvendar qual seria sua espécie. Parecia um gavião ou uma águia muito imponente. Ela ficou rondando o bairro até pousar numa palmeira imperial de porte igualmente majestoso e ficou observando das alturas nossa extasiada pequenês atravessando as ruas de um domingo sossegado.
Descobri que a ave é um carcará, aquele da música “carcará, pega, mata e come” que inspirava medo aos retirantes da seca no sertão. Hoje, é esse parente dos falcões que deveria nos temer.
Que São Francisco de Assis (se realmente tiver tal poder) te abençoe e te proteja de todos nós!
“A BELEZA do mundo não é um atributo da própria matéria. É uma relação do mundo com nossa sensibilidade, essa sensibilidade que depende da estrutura do nosso corpo e da nossa alma.”
“MAGOAR alguém é transferir para outrem a degradação que temos em nós.”
“A beleza é a harmonia entre o acaso e o bem.”
“ATENÇÃO é a forma mais rara e pura de generosidade.”
‘Quando dois seres que não são amigos estão perto um do outro não há encontro, e quando amigos estão distantes não há separação.”
“O mais alto êxtase é a mais completa atenção.”
Simone WEIL foi uma pensadora francesa, pacifista e militante de esquerda nascida em Paris, cujas ações mostraram uma vida dedicada a busca pela justiça. Descendente de uma família judia abastada e culta, estudou filosofia na École Normale Superieure, exerceu o magistério e colaborou em jornais de esquerda. Também trabalhou como operária numa fábrica de automóveis (1934 -1935), passando a seguir a militar em movimentos anarquistas, inclusive participando com os republicanos na guerra civil espanhola (1936-1938), sem empunhar armas por causa de princípios pacifistas.
A partir de então (1938) passou a defender uma prática mística, o existencialismo cristão na linha de Kierkegaard. De volta à França, passou por Marselha e depois por Paris, onde passou a colaborar em jornais ligados à Resistência. Viajou pelos Estados Unidos (1942) e logo depois voltou a Londres, onde continuou sua luta contra o nazismo. Morreu em virtude de uma greve de fome em apoio a seus conterrâneos, em Ashford, Inglaterra. Seus principais textos foram publicados postumamente, como nas coletâneas La Pesanteur et la grâce (1947), L’Enracinement (1949) e Oppression et liberté (1963).
devagar escreva uma primeira letra escreva nas imediações construídas pelos furacões; devagar meça a primeira pássara bisonha que riscar o pano de boca aberto sobre os vendavais; devagar imponha o pulso que melhor souber sangrar sobre a faca das marés; devagar imprima o primeiro olhar sobre o galope molhado dos animais; devagar peça mais e mais e mais
“Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentimentos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra “pensar” que significa “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar das doenças pelas quais padece.” – Mia Couto, em interinvenções “Quebrar armadilhas”, do livro “E se Obama fosse africano?: e outras interinvenções / Ensaios”. Lisboa: Editorial Caminho, 2009.
“Quebrar armadilhas” interinvenção de Mia Couto no Congresso de Leitura COLE, em Campinas/SP, no ano de 2007. O COLE homenageou naquele ano o poeta Ferreira Gullar. A conferência foi publicada no livro de ensaios “E se Obama fosse africano?: e outras intervenções / Ensaios” (2009).
Quebrar armadilhas
[…] Eu sou um poeta e sinto-me feliz pelo facto de a poesia atuar como estrela inspiradora para um encontro desta natureza. A poesia prova assim não ser apenas um gênero literário, mas um olhar revelador de mistérios e uma sabedoria resgatadora da nossa profunda humanidade. A poesia é um modo de ler o mundo e escrever nele um outro mundo. Buscar iluminação na voz de um poeta já é um primeiro quebrar de armadilhas.
[…] Compete-nos desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário. Todos queremos um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito pouco de mundo. A isso chamaram de utopia. Sabendo que esta palavra contém já uma cilada. A palavra “utopia”, que vem do grego, quer dizer o “não-lugar” (em contraponto com o lugar concreto que é o nosso mundo real). Mas eu não estaria fazendo poesia se dissesse que, nas condições de hoje, aconteceu uma curiosa inversão: o chamado mundo real é aquele que se apresenta como um verdadeiro não-lugar, um lugar vazio onde cabemos apenas como ilusão virtual. Não sei se poderemos chamar de lugar ao território onde vivemos uma vida que nunca chega a ser nossa e que, cada vez mais, nos surge como uma vida pouco viva. […]
A leitura é o propósito que aqui nos junta. Nós queremos todos que se promova a leitura e se valorize o livro. E eu queria falar exactamente da palavra “ler”. Muitas vezes pensamos a nossa língua como algo que sempre existiu e que sempre existiu tal como a conhecemos hoje. Mas as palavras nascem, mudam de rosto, envelhecem e morrem. É importante saber onde nasceu cada uma delas, conhecer-lhe os parentes e saber do namoro que a fez nascer. Entender a origem e a história das palavras faz-nos ser mais donos de um idioma que é nosso e que não apenas dá voz ao pensamento como já é o próprio pensamento. Ao sermos donos das palavras somos mais donos da nossa existência.
A palavra “ler” vem do latim legere e queria dizer “escolher”. Era isso que faziam os antigos romanos quando, por exemplo, seleccionavam entre os grãos de cereais. A raiz etimológica está bem patente no nosso termo “eleger”. Ora o drama é que hoje estamos deixando de escolher. Estamos deixando de ler no sentido da raiz da palavra. Cada vez mais somos escolhidos, cada vez mais somos objecto de apelos que nos convertem em números, em estatísticas de mercado.
A armadilha do idioma é já um primeiro tropeço no caminho para chegarmos aos outros e a nós mesmos. Pensamos na nossa língua mas não pensamos essa mesma língua. Do mesmo modo, deixamos de ler a nossa própria língua. E porque deixamos de ler somos surpreendidos por ausências e desfasamentos. Conceitos e categorias que nos parecem inocentes e universais não se apresentam universalmente do mesmo modo. Eu vivo num país, Moçambique, em que se costuram várias fronteiras interiores. São fronteiras de culturas, línguas, etnias, religiões. Esse convívio com a diversidade me obriga a revisitar palavras e conceitos que me parecem impensadamente globais. E vou aprendendo coisas curiosas. Por exemplo, vou sabendo de pais que são tios, de tias que são mães, de primos que são irmãos. Tudo isto porque as relações de parentesco não podem ser traduzidas com a facilidade de um assunto técnico. E vou sabendo de leões que, afinal, são pessoas, de crocodilos que são animais de alguém, de pessoas que, depois da morte, renascem em perdizes, em leopardos, em morros de muchém.
As armadilhas de dentro
A nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que separa os “bons” dos “maus” é sempre a mais imediata. Quanto menos entendemos, mais julgamos.
A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe, nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental.
Escolhi falar dessas ratoeiras interiores que nos convertem em nómadas deambulando entre ecos e sombras.
A armadilha da realidade
Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de “realidade”. Falo, é claro, da ideia de realidade que actua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de “razão”, outros de “bom-senso”. A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que a levar tão a sério.
Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: “Eu desvalorizei as paredes”. Essa lição se converteu num lema da minha conduta.
Ho Chi Minh ensinou a si próprio a ler para além dos muros da prisão. Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentidos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra “pensar” que significava “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência, recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crítica. Significa fazermos com a nossa vida quotidiana aquilo que fizemos neste congresso que é deixar entrar a luz da poesia na casa do pensamento.
A armadilha da identidade
A mais perigosa armadilha é aquela que possui a aparência de uma ferramenta de emancipação. Uma dessas ciladas é a ideia de que nós, seres humanos, possuímos uma identidade essencial: somos o que somos porque estamos geneticamente programados. Ser-se mulher, homem, branco, negro, velho ou criança, ser-se doente ou infeliz, tudo isso surge como condição inscrita no ADN. Essas categorias parecem provir apenas da Natureza. A nossa existência resultaria, assim, apenas de uma leitura de um código de bases e nucleótidos.
Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é não ter natureza nenhuma. Com isso ela combatia a ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino programado nos cromossomas, mas a realização de um ser que se constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente.
A imensa felicidade que a escrita me deu foi a de poder viajar por entre categorias existenciais. Na realidade, de pouco vale a leitura se ela não nos fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não nos deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos, outras vozes.
A questão não é apenas do domínio de técnicas de decifração do alfabeto. Trata-se, sim, de possuirmos instrumentos para sermos felizes. E o segredo é estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades. É fácil sermos tolerantes com os que são diferentes. É um pouco mais difícil sermos solidários com os outros. Difícil é sermos outros, difícil mesmo é sermos os outros.
A armadilha da hegemonia da escrita
Uma terceira armadilha é pensar que a sabedoria tem residência exclusiva no universo da escrita. É olhar a oralidade como um sinal de menoridade. Com alguma condescendência, é usual pensar a oralidade como património tradicional que deve ser preservado. O culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade.
Certa vez, um menino de rua em Maputo veio-me devolver um livro que ele vira nas mãos de uma estudante à saída da escola. Notando a minha fotografia na capa, esse menino acreditou que a estudante me tinha roubado o livro.
Me comoveu esse menino que atravessou a cidade para me devolver algo que, no entender dele, me pertencia. Mas o que ele me entregava era mais do que um objecto. Ele me entregava a inquietação profunda, a interrogação: a quem pertence realmente um livro? Ele é nosso porque o adquirimos, sim. O livro deve ser objecto e mercadoria para chegar às nossas mãos. Mas só somos donos desse objecto quando ele deixa de ser objecto e deixa de ser mercadoria. O livro só cumpre o seu destino quando transitamos de leitores para produtores do texto, quando tomamos posse dele como seus co-autores.
A mais importante linha divisória em Moçambique não é tanto a fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas a fronteira entre a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A absoluta maioria dos 20 milhões de moçambicanos vive e funciona num tipo de racionalidade que tem pouco a ver com o universo urbano. Mas em Moçambique, como no resto do mundo, a lógica da escrita instalou-se com absoluta hegemonia. Nesses casos, pressupostos filosóficos do mundo rural correm o risco de ser excluídos e extintos. Algumas das ideias que venho defendendo nesta comunicação estão claramente presentes na epistemologia da ruralidade africana.
A concepção relacional da identidade, inscrita no provérbio: “Eu sou os outros”; a ideia de que a felicidade se alcança não por domínio mas por harmonias; a ideia de um tempo circular; o sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos: todos estes conceitos constam da rica cosmogonia rural africana.
É evidente que não se pode romantizar esse mundo não urbanizado. Ele necessita de enfrentar o confronto com a modernidade. O desafio seria alfabetizar sem que a riqueza da oralidade fosse eliminada. O desafio seria ensinar a escrita a conversar com a oralidade.
Não são só os livros que se lêem
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o acto de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?
Lembrei aqui o episódio do menino de rua porque tudo começa aí, na infância. A infância não é um tempo, não é uma idade, uma colecção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.
A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.
Recordo-me de que a guerra tinha deflagrado no meu país e o meu pai me levava a passear por antigas vias-férreas à procura de minérios brilhantes que tombavam dos comboios. Em redor, havia um mundo que se desmoronava mas ali estava um homem ensinando o seu filho a catar brilhos entre as poeiras do chão. Essa foi uma primeira lição de poesia. Uma lição de leitura do chão que todos os dias pisava. Meu pai me sugeria uma espécie de intimidade entre o chão e o olhar. E ali estava uma cura para uma ferida que eu não saberei nunca localizar em mim, uma espécie de memória de alguém que viveu em mim e fechou atrás de si um cortinado de brumas.
Pois eu vivo praticando a lição de leitura do meu pai que promove o chão em página. E estou aplicando o ensinamento de Ho Chi Minh que despromove a prisão em possibilidade de página. Deste modo aprendendo algo que sei que nunca chegarei a saber.
Enquanto escrevia o meu romance O último voo do flamingo viajei pelo litoral do sul de Moçambique à procura de mitos e lendas sobre o mar. Mas tal não aconteceu. Dificilmente havia histórias ou lendas. O imaginário destes povos pertencia invariavelmente à terra firme. Apesar de habitarem o litoral, os seus sonhos moravam longe do oceano.
Aos poucos fui entendendo — aquelas zonas costeiras eram habitadas por gente que chegou recentemente à beira-mar. São agricultores-pastores que foram sendo empurrados para o litoral. A sua cultura é a da imensidão da savana interior. Em suas línguas não existem palavras próprias para designar barco. O pequeno barquinho toma o nome a partir do inglês — bôte. O navio grande é chamado de xitimela xa mati (literalmente, “o comboio da água”). O próprio oceano é chamado de “lugar grande”. Pescar diz-se “matar o peixe”. Deitar a rede é “peneirar a água”. As armadilhas de pesca são construídas à semelhança daquelas usadas na caça. Os territórios de colecta de mariscos na praia são parcelados e sujeitos a pousio, exactamente como se faz nos terrenos agrícolas. Ao contrário do que sucede no centro e no norte de Moçambique, estes povos pescam sem serem pescadores. São lavradores que também colhem no mar. O seu assunto continua sendo a semente e o fruto. Os seus sonhos moram em terra e os deuses viajam pela chuva.
Nós estamos todos como esses povos que desconheciam a relação com o mar. O chamado “progresso” nos empurrou para uma fronteira que é recente, e olhamos o horizonte como se fosse um abismo sem fim. Não sabemos dar nome às coisas e não sabemos sonhar neste tempo que nos cabe como nosso. Os nossos deuses dificilmente têm moradia no actual mundo.
Mas é exactamente nesse espaço de fronteira que estamos aprendendo a ser criaturas de fronteira, costureiros de diferenças e viajantes de caminhos que atravessam não outras terras mas outras gentes. A poesia de Gullar deu mote a este encontro. O poeta Gullar defende que a poesia tem por missão desafiar o impossível e dizer o indizível. O que o poeta faz é mais do que dar nome às coisas. O que ele faz é converter as coisas em aparência pura. O que o poeta faz é iluminar as coisas. Como nos versos com que encerro:
Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,
a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.
– Mia Couto, extrato da conferência “Quebrar armadilhas”, no livro “‘E se Obama fosse africano?: e outras interinvenções/Ensaios”. Lisboa: Editorial Caminho, 2009; Companhia das Letras, 2011.
Cora Coralina
A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
Cora Coralina
Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.
Os Homens Ocos (T. S. Eliot) Nós somos os homens ocos Os homens empalhados Uns nos outros amparados O elmo cheio de nada. Ai de nós! Nossas vozes dessecadas, Quando juntos sussurramos, São quietas e inexpressas Como o vento na relva seca Ou pés de ratos sobre cacos Em nossa adega evaporada Fôrma sem forma, […]
Abel Meeropol*
Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black body swinging in the Southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolia sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh!
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.
* Abel Meeropol foi um compositor e poeta norte-americano. Seu trabalho mais conhecido, Strange Fruit, um poema anti-linchamento, foi gravado por Billie Holiday e interpretado por outros artistas como Nina Simone. Também tornou-se célebre por escrever músicas para artistas como Frank Sinatara e Josh White. Escreveu a maior parte de seu trabalho sob um pseudônimo, Lewis Allen, em homenagem aos seus dois filhos natimortos. Faleceu em outubro de 1986.
Quem não se comove com a maior de todas as tragédias brasileiras e não fez todo o possível para evitá-la não tem coração. Tudo isso para aumentar: o lucro de empresas farmacêuticas e a propina para este desgoverno. São todos assassinos, são monstros.
Talvez vocês consigam transformar sua dor, seu luto, nosso abismo em algo: em desabafo, em gritos, em palavras. Dizer o indizível, olhar de frente nossa miséria, a miséria humana, dói, dói muito, mas não dizer e não olhar dói muito mais.
Quantos versos conseguimos escrever com as letras da palavra “assassinos”?
Si
Só sai,
insana sina
o asno insano assa as asas sãs
assina só os nossos ossos ansiosos, sósias
Os sóis não são só isso?
No sono, nos sinos, nos sinais, a sós nossa sina
no sono, o siso sana nossos anos insossos!
Nos sinos, os Sis, os Sóis
os Sons são asas
Os sinais?
Nos oásis, saias são nossas asas no anis.
Cora Coralina
Faz da tua casa uma festa!
Ouve música, canta, dança...
Faz da tua casa um templo!
Reza, ora, medita, pede, agradece...
Faz da tua casa uma escola!
Lê, escreve, desenha, pinta, estuda, aprende, ensina...
Faz da tua casa uma loja!
Limpa, arruma, organiza, decora, muda de lugar, separa para doar...
Faz da tua casa um restaurante!
Cozinha, prova, cria, cultiva, planta...
Enfim...
Faz da tua casa
Um local criativo de amor.
Você pode me inscrever na História
Com as mentiras amargas que contar,
Você pode me arrastar no pó
Mas ainda assim, como o pó, eu vou me levantar.
Minha elegância o perturba?
Por que você afunda no pesar?
Porque eu ando como se eu tivesse poços de petróleo
Jorrando em minha sala de estar.
Assim como lua e o sol,
Com a certeza das ondas do mar
Como se ergue a esperança
Ainda assim, vou me levantar
Você queria me ver abatida?
Cabeça baixa, olhar caído?
Ombros curvados com lágrimas
Com a alma a gritar enfraquecida?
Minha altivez o ofende?
Não leve isso tão a mal,
Porque eu rio como se eu tivesse
Minas de ouro no meu quintal.
Você pode me fuzilar com suas palavras,
E me cortar com o seu olhar
Você pode me matar com o seu ódio,
Mas assim, como o ar, eu vou me levantar
A minha sensualidade o aborrece?
E você, surpreso, se admira,
Ao me ver dançar como se tivesse,
Diamantes na altura da virilha?
Das chochas dessa História escandalosa
Eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor
Eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irriquieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.
Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara
Eu me levanto
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto!
Que nossas palavras estranguladas
reflitam a falsa liberdade de nosso tempo insensível!
Deixemos, para os iluminados
que bailam na cadência frenética
desta época esquiva, as palavras em liberdade!
Nossos versos serão os dos excluídos e seus limites.
Constrangidos por infinitas serpentes
e injustiçados por inúmeros crimes,
não fingiremos que somos leves pássaros.
Contudo esta camisa de força poética
Sempre será um ato de devoção
e uma ação política.
Então, com pústula, verme e assassino,
escrevamos versos sublimes
Para provar que nosso sonho é possível!
Si
Só sai,
insana sina
o asno insano assa as asas sãs
assina só os nossos ossos ansiosos, sósias
Os sóis não são só isso?
No sono, nos sinos, nos sinais, a sós nossa sina
no sono, o siso sana nossos anos insossos!
Nos sinos, os Sis, os Sóis
os Sons são asas
Os sinais?
Nos oásis, saias são nossas asas no anis.
Ser o que vocês sonharam para nós
Está nos rasgando em pequenos pedaços
E, em nossa estrada, em cada curva se estendem
As cruzes de seu passado mal resolvido,
Até onde nosso olhar alcança …
Tentar nos esquivar do inevitável,
Está nos dilacerando membro por membro…
Oh criador, contemple suas criaturas
Perceba nossa imobilidade por coisas vazias
Somos assépticos
Somos ascetas
¬- Assim, nada, nada pode dar errado!
Recolhemos nossos sorrisos barulhentos
Para evitar tantas ameaças à nossa pureza!
Nós nos deitamos num altar de sacrifícios
Pela nossa e por todas as gerações anteriores a nós.
Vocês precisaram dessa hecatombe
E nós aceitamos por nossa bondade.
Vivemos nas montanhas…
É o preço a pagar por nossa limpeza.
Permanecemos nas rochas inacessíveis
Aonde ainda podemos morar sem cair nos abismos.
Lá embaixo um oceano nos observa e espera…
Imaginei como seria um poema escrito por meu pai em homenagem a Carlos Bueno Guedes e Federico Garcías Lorca, ambos artistas presos por regimes totalitários que esmagam pessoas idealistas e temem em excesso perigosos poetas.
Infelizmente, meu pai faleceu e não teve oportunidade de conhecer a história de Carlos, seu teatro, seus milhares de poemas e nenhum livro publicado ainda, um poeta torturado pelo regime militar no Brasil.
Fico imaginando que meu pai e o Sr. Carlos poderiam ter se tornado grandes amigos, se os seus caminhos pelo mundo tivessem se cruzado e esse encontro hipotético de dois idealistas inspiraria um poema, talvez semelhante a este.
Poeta obscuro,
Eu vejo você quando chora à noite
Por seus sonhos perdidos
E em sua cela sozinho, deseja dormir
E talvez sonhar.
Eu vejo quando sente o peso das injustiças
Presentes e passadas, sem conseguir mais orar.
Eu vejo você quando quer braços quentes
E abraça o vazio.
Vejo seus ombros caídos de tanto lutar.
Vejo o desespero em seus olhos nas horas fatais.
Sinto sua vertigem,
Quando o ponto sem retorno avança sutil.
Sei que você sabe que as tiranias
Sempre vão longe demais,
Não suportam alegria
E condenam ideais.
Vejo seu coração quando um obtuso pelotão
Se prepara para atirar.
Há um tema contínuo e unificador na filmografia de Mizoguchi: a mulher, a sua situação na sociedade japonesa e a sua relação com os homens. O interesse dele pela condição feminina radica em dados biográficos: a mãe e a irmã mais velha, Suzuko, eram maltratadas pelo pai, que acabou por vender a filha para tornar-se gueixa
Foi com “Contos da Lua Vaga” (1953), exibido e premiado no Festival de Veneza, que Kenji Mizoguchi se deu a conhecer ao Ocidente, mostrando que Akira Kurosawa, que dois anos antes havia ganho o mesmo festival com “As Portas do Inferno”, não era o único grande realizador a trabalhar no cinema japonês e a divulgá-lo e popularizá-lo no estrangeiro. Só um terço da vasta obra de Mizoguchi (1898-1956) sobreviveu e está disponível hoje. Oito desses filmes, alguns já vistos em Portugal e outros inéditos, e exibidos em cópias restauradas, compõem o Ciclo Kenji Mizoguchi que estará no Espaço Nimas, em dois tempos. O primeiro, que pode ser visto até 10 de Maio, inclui “Contos da Lua Vaga”, “Os Amantes Crucificados” e “A Mulher de Quem se Fala”. O segundo, a partir de 11 de Maio, apresentará “Festa em Gion”, “A Senhora Oyu”, “A Imperatriz Yang Kwei Fei”, “O Intendente Sanshô”, “Rua da Vergonha” e “O Conto dos Crisântemos Tardios”, mantendo em cartaz “Os Amantes Crucificados”.
Depois da morte da mãe, foi Suzuko quem cuidou dele e dos irmãos mais novos, e lhe arranjou os primeiros empregos. A devoção e os sacrifícios da irmã marcaram profundamente Mizoguchi, que inscreveria a dedicação, a capacidade de amor e o sofrimento feminino nos seus filmes, de época (“jidaigeki”) ou contemporâneos. Estes sentimentos estão presentes em “Contos da Lua Vaga”, talvez o mais representativo do realizador, do seu estilo, das suas preocupações, do seu humanismo, do seu poder cinematográfico e do seu gênio.
Inspirado em dois contos fantásticos do escritor Ueda Akinari e num outro de Guy de Maupassant, “Contos da Lua Vaga” passa-se no Japão em guerra civil do século XVI e é ao mesmo tempo uma fábula moral, um filme realista e uma história sobrenatural, onde se revela uma tensão presente em toda a obra de Mizoguchi, entre o respeito pelos valores tradicionais e o impulso individualista. Tal como sucede nos filmes dos maiores mestres do cinema nipônico, como Kurosawa, Ozu, Naruse ou Ichikawa, “Contos da Lua Vaga” é uma narrativa intrínseca e inconfundivelmente japonesa, nas circunstâncias históricas, na realidade cultural, nos temperamentos e no plano mental, mas que assume ressonâncias universais, exemplo de um cinema que expressa a identidade mais própria e funda de um povo, mas que se transcende para uma representação de toda a humanidade.
Escrito por Mizoguchi e pelo seu habitual colaborador Yoshikata Yoda, e fotografado pelo lendário Kazuo Miyagawa, que também trabalhou com Kurozawa, Ozu e Ichikawa, “Contos da Lua Vaga” é a história de um oleiro ganancioso, da mulher, do seu filho pequeno, do seu vizinho — um camponês que sonha ser samurai — e da mulher deste. A guerra civil obriga-os a fugir da aldeia e separa uns dos outros.O oleiro deixa-se seduzir por uma bela aristocrata, que na realidade é um fantasma, e esquece a mulher e o filho, enquanto que o camponês rouba a cabeça decapitada de um general e consegue tornar-se samurai, mas a sua mulher é violada por um grupo de soldados e forçada a prostituir-se numa casa de gueixas para conseguir sobreviver.
Em “Contos da Lua Vaga”, os homens concentram em si todos os defeitos, são gananciosos, violentos, inconscientes, ingratos e arrogantes, enquanto que as mulheres, com as quais Mizoguchi se identifica e apresenta como modelos, são vítimas. Sofrem, sacrificam-se, nunca deixam de amar os maridos e temer por eles, e personificam o bom senso. A simpatia e a compaixão do realizador estendem-se até aos espectros, já que a aristocrata fantasma que seduz o oleiro, a bela Senhora Wakasa, longe de ser um espírito maligno, é ela também vítima da guerra e morreu sem conhecer o amor, que agora procura entre os vivos, sem o qual estará condenada a penar para sempre, acompanhada pela sua fidelíssima serva (duas das atrizes favoritas de Mizoguchi, Tanaka Kinuyo e Michiko Kyô, desempenham dois dos principais papéis femininos).
Realizador pictórico por excelência, e avesso a malabarismos e exibicionismos, Mizoguchi enche “Contos da Lua Vaga” de momentos visuais inesquecíveis, uns belíssimos na sua poesia etérea, como a fuga dos camponeses de barco num rio amortalhado em nevoeiro, o piquenique dos amantes numa natureza irreal de tão idílica, ou ainda o sublime plano final do menino junto à campa da mãe; outros tremendos na sua crueza, caso do ataque dos soldados à mulher que carrega o filho às costas, ou do exorcismo no solar assombrado. A sua câmara tem uma eloquência reservada, uma elegância eficiente e uma fluidez invisível. Com ela, dizia o cineasta, procurava “retratar o extraordinário de forma realista”.Filme realista e extraordinário, poético e cruel, de rosto humano e textura sobrenatural, “Contos da Lua Vaga” é a melhor porta de entrada para a obra de Kenji Mizoguchi.
Você, que é tão erudito,
recite-me versos suaves, por piedade,
para recuperar de viver a vontade!
Você, que é tão ajuizado,
Por misericórdia me dite os santos escritos
Nos templos ouvidos,
Para alimentar desgraçados proscritos!
Você, que é tão são,
por compaixão, reze-me uma oração
para alentar a quem vive ao relento;
a quem se negou a terra de onde tirar o sustento;
a quem nunca recuperou seu pródigo rebento.
Thaís GM
A melhor frase que ouvi recentemente sobre os brasileiros é de Teolinda Gersão, autora portuguesa do livro “A cidade de Ulisses”: mesmo diante do abismo, os brasileiros sorriem, ficam alegres, parecem pensar que são tão grandes que não caberão nele.
Se essa aparência reflete o que realmente sentimos, eu não sei. Acho que simplesmente não pensamos. A maioria é inconsequente e prefere se drogar assistindo BBB ou usando outra distração qualquer, para não pensar no abismo, ao invés de tentar escapar dele.
Como o personagem kafkiano de A Metamorfose, que, ao se transformar em um inseto gigantesco, só consegue se preocupa se vai conseguir chegar ao trabalho na hora.
Zeus, por favor, me cubra;
Por piedade me cubra com seu manto protetor no frio!
No calor me cubra com sua chuva refrescante.
Nas viagens me cubra com suas acolhedoras penas.
Por favor, por amor me proteja de toda a dor, de todo mal.
Senão juro, por Juno, enlouquecerei e sairei rumo ao Oriente desnudo
Até mil lobos me estraçalharem,
Como minhas seguidoras fizeram a Orfeu
Ou talvez não.
Talvez seja curado por Cybelle.
Talvez meu vinho embebede as turbas.
Talvez triunfe sobre Tebas,
Talvez fique e desfile pelas avenidas no carnaval
E crie o drama, a tragédia e a comédia.
Amém!
O conto “A mulher mais bela da cidade”, de Bukowski, é horrível e belo, como seus personagens. Ainda estou digerindo porque é muito impactante. Agora percebo que alguns amigos da faculdade imitavam esse autor. Eu me pergunto por que demorei tanto para ler as obras dele. Acho que tinha medo de conhecer esse mundo, ou submundo, como dizem. Não gosto dessa palavra, submundo. Essa associação com o inferno me parece injusta, já que alguns personagens desse universo apenas tiveram muito azar na vida. Outro motivo de nunca ter lido era a fama que os textos dele têm de serem escatológicos, o que me enojaria bastante se lesse, mas esse não é muito.
O conto parece uma releitura marginal do conto de fadas “A Bela e a Fera” pois o tema da beleza externa e da beleza interior é o mesmo, contudo com uma visão totalmente diferente e menos convencional sobre o assunto. O conto apresenta o momento em que o narrador, um homem feio, conhece a mais bela jovem local, a qual se mutila para ficar feia pois quer que gostem dela por outros motivos e não apenas porque querem fazer sexo com ela. A bela não gosta de homens bonitos, pois são só belos e mais nada. O narrador crê que, um dia, um homem irá destruí-la, e gostaria que não fosse ele mesmo. Os episódios com cenas de sexo são bonitos, comoventes e decadentes, bem diferente do que eu imaginava. O final é terrível, de arrepiar. A condição da mulher é uma droga mesmo, e o narrador-personagem sabe que ele faz parte do problema, mas nada pode ser feito para mudar isso pois ele não podia prever as consequências de seus atos e de suas palavras. Não é conformismo, nem alienação, mas sim uma tragédia humana, como nas tragédias gregas, a personalidade do herói em conflito com o estado de coisas, leva-o, inexoravelmente, ao abismo. Enfim, as belas também sofrem, pois não querem ser só belas, ou como dizem vulgarmente por aí apenas “alguém comível”, ou pior ainda, como disse Bolsonaro “uma mulher feia não merece ser estuprada”. Sejamos todas o mais feias possível, então, por proteção.
Acabei de adquirir Crônica de um amor louco: ereções, ejaculações, exibicionismos – Parte I, do Bukowski. Exibicionismo é a cara da nossa era e não posso ficar de fora, então aí está. Não acredito que só agora resolvi ler sua obra. Vamos ver se é um livro “maldito” mesmo ou um maldito livro. É provável que seja as duas coisas. Já vou tomar um dramin antes, por via das dúvidas. Depois de ler, farei uma resenha, se alguém estiver interessado na obra do “Velho Safado”* ou na droga da minha opinião (já estou ficando com o jeitão dele).
* Essa expressão maldosa não é minha, é como Bukowski ficou conhecido no meio literário.
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.
Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.
E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: É hora de embriagar-se!
Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso. Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.
o sangue, que jorra das veias de seu povo,
é esquecido, é ignorado
até quando fingiremos que tudo é normal?
até quando viraremos as costas àqueles que sofrem
de um grande mal?
“assim caminha a humanidade”, uns dizem.
outros permanecem calados,
enquanto seus filhos se esquivam da morte sem
saber se seus passos serão lembrados
todos eles serão só números quantificados?
alguns ainda virarão dissertação ou teses de doutorado,
mas sem nome, sem lar
nem água nem chão,
todos seus filhos serão
prisioneiros em seu próprio torrão?
e todos nós sem a vergonha de deixar
que isso aconteça a um irmão?
12-07-2012
À Abd Al-Hasib Atta Zaloum
Sobre o solo, jaz a carcaça do que um dia havia sido um ônibus.
Hoje, tornou-se abrigo do velho sem moradia.
As estrelas no céu velam por eles à noite.
O frio passa pelas vidraças estilhaçadas,
Vem sorrateiro seu rosto açoitar.
Sob o sol escaldante,
a sombra vem de uma árvore solitária.
O ônibus à noite e a árvore de dia
São todo o seu reino, como nem
o rei da Jordânia tem.
Assim que ficou pronta,
sua antiga casa foi demolida;
sua terra, por colonos, roubada.
Converteram seu território em "área de segurança".
Segurança pra quem,
se o velho agora vive ao relento?
Não é o velho, de humanos, rebento?
Não necessita de segurança também?
É menos humano que as crianças da escola
atrás daquela muralha, já que delas só recebe desdém?
Como a vida, que poderia ter tido, foi interrompida,
Perdeu sua costumeira esperança
e neste solo devastado só quer plantar seus olhos cansados
Para não verem mais a guerra assolar o seu lar.
Segundo pensador italiano, o culto à tradição; a repulsa ao moderno; o machismo; o racismo; a guerra permanente são típicos do “fascismo eterno”. Ou seja, a ameaça já está implantada entre nós, mesmo que não siga seu nome
Tenho refletido e escrito sobre a perda de vitalidade da democracia. Mas acho que agora já entramos num perigoso caminho de desconstrução da democracia, uma ameaça que vem na esteira do golpe do impeachment e se expressa hoje no nosso governo híbrido, civil-militar, com sua agenda antidireitos. Claro, a institucionalidade democrática formal está mantida até aqui, mas algo por dentro vem corroendo os princípios e valores éticos e políticos vitais da democracia: o respeito incondicional da liberdade de ser, pensar e agir, a busca da maior igualdade possível, com direito à diversidade, convivendo em solidariedade coletiva e baseando tudo em ativa participação cidadã. Tais princípios constituem o substrato de qualquer democracia com potencial de transformar contradições e divergências, de potencial destrutivo, em forças construtivas de sociedades mais livres e justas.
Hoje reconheço um vírus implantado em nosso seio que pode acabar com a democracia e nos levar ao fascismo como regime político. Estamos diante de sinais inequívocos de tal vírus no campo de ideias e valores que foram se revelando e se condensaram na vitória eleitoral e nas falas do presidente e de integrantes do governo empossado. A leitura de um discurso de Umberto Eco, de 24 de abril de 1995, na Universidade de Columbia, Nova York, publicado em espanhol por Bitacora, sob o título Los 14 síntomas del fascismo eterno, me inspirou. Segundo Eco, as características típicas do “Ur-Fascismo” ou “fascismo eterno” não se enquadram num sistema, “…mas basta com que uma delas esteja presente para fazer coagular uma nebulosa fascista” (em tradução livre). Vou lembrar aqui apenas alguns dos indícios do eterno fascismo que Eco aponta e que deixo aos leitores desta minha crônica identificar as suas expressões na realidade brasileira.
Culto da tradição – como se toda a verdade já estivesse revelada há muito tempo e o que precisamos é ser fiéis a ela. O tradicionalismo é uma espécie de cartilha na disputa de hegemonia fascista sobre corações e mentes. O pensamento do principal guru dos “donos do poder”, a pregação das igrejas pentecostais e as falas – quando dizem algo – são impregnados de uma veneração da verdade já revelada em escritos sagrados e de valores espirituais mais tradicionais do cristianismo. “Deus, pátria, família e propriedade”, com a força que estão de volta como pregação, não deixam dúvida. Fascismo e fundamentalismo sempre vêm juntos.
Repulsa ao modernismo – que leva a considerar as conquistas humanas em termos de direitos e de emancipação social como perversidades da ordem natural. Nega-se, em consequência, a racionalidade e, com ela, toda a ciência e a tecnologia. Não falta gente com tal forma de pensar no governo e seus seguidores. Para eles, direitos iguais são um absurdo. Mudança climática é uma “invenção de comunistas”. E por aí vai.
Culto da ação pela ação – fazer e agir, acima de tudo. Como diz Eco, para fascistas “pensar é uma forma de castração”. Daí a atitude de suspeita à cultura, pois é vista como algo crítico. Em consequência, todo mundo intelectual é suspeito. Ainda Eco, “O maior empenho dos intelectuais fascistas oficiais consistia em acusar a cultura moderna e a intelligentsia liberal de ter abandonado os valores tradicionais”.
Não aceitação do pensamento crítico – pensar criticamente é fazer distinções e isto é sinal de modernidade, pois o desacordo é base do avanço do conhecimento científico. O fascismo eterno considera a divergência como traição. Deve-se aceitar a verdade da ordem estabelecida. Daí, “escola sem partido”, sem iniciação ao pensamento crítico e a liberdade de expressão e ação.
O racismo na essência – segundo Eco, com medo da diferença, o fascismo a explora e potencializa em nome da busca e da imposição do consenso. Os e as diferentes não são bem vindos. Por isso, o fascismo eterno é essencialmente racista e xenofóbico. Daí a identificar os diferentes como criminosos a linha é reta.
O apelo aos precarizados e frustrados – todos os fascismos históricos fizeram apelo aos grupos sociais que sofrem frustração e se sentem desleixados pela política. As mudanças no mundo do trabalho, promovidas pela globalização econômica e financeira, são terreno fértil para o fascismo.
O nacionalismo como identidade social – nação como lugar de origem, com os seus símbolos. Os e as que não se identificam com isso são inimigos da nação. Portanto, devem ser excluídos. Podem ser os nascidos fora da nação, como os imigrantes, ou por se articularem com forças externas – o tal “comunismo internacional” – ou, ainda, por não se enquadrarem no padrão “normal” de nacionalidade. O nacionalismo vulgar é o cimento agregador de qualquer fascismo.
A vida como guerra permanente – no fascismo, a gente não luta pela vida, liberdade, bem viver, mas vive para lutar. A violência é aceita como regra e a busca de paz uma balela. Vencem os mais fortes, armados. Há um culto pela morte na luta.
O heroísmo como norma – o herói, um ser excepcional, sem medo da morte, está em todas as mitologias. Aqui basta lembrar a exploração feita daquele atentado em Juiz de Fora. O herói vira mito real.
O machismo como espécie de virtude – em sendo difícil a guerra permanente e a demonstração de heroísmo, o fascismo potencializa as relações de poder na questão sexual, segundo Umberto Eco. Aqui também não faltam manifestações de patriarcalismo e machismo, com intolerância com o que é considerado divergente da norma em questões sexuais. Não há lugar para a liberdade de opção sexual e de gênero.
O líder se apresenta como intérprete único da vontade comum – o povo é o seu povo, o seu entendimento do que seja o povo e sua vontade comum. Como diz Eco, estamos diante de um populismo de ficção.
Chamei atenção aqui para indícios de fascismo total apontados por Umberto Eco – não todos, para não ser enfadonho e talvez desvirtuar o que o autor quis dizer – com a preocupação de dar atenção a ideias e imaginários que estão adquirindo legitimidade mobilizadora no nosso seio. Inspirado no atualmente renegado Antônio Gramsci, exatamente pelo emergente fascismo político e cultural, penso que a conquista de hegemonia no sentido de direção intelectual e moral precede o poder do fascismo pela força estatal. Ou seja, a ameaça de fascismo já está implantada entre nós, mesmo se o regime ainda não parece ser fascista.
A trabalho em Campo Grande pela primeira vez, o poeta e youtuber Allan Dias Castro foi convidado para participar da 34ª Noite da Poesia nesta quinta-feira (15). Sucesso nas redes sociais e integrando a lista de livros mais vendidos do País, o escritor reforçou que seu objetivo é desmistificar a criação literária e apoiar quem é visto como “louco” por seguir seus sonhos. – CREDITO: CAMPO GRANDE NEWS