Porque o sapo não lava o pé, segundo vários intelectuais

Este texto, além de engraçado e criativo, pode ser usado em sala de aula como exemplo de hipotextualidade: o pastiche do estilo de cada autor demonstra uma das infinitas formas de transcendência textual…

POR QUE O SAPO NÃO LAVA O PÉ?

Explicações de vários estudiosos…

Olavo de Carvalho: O sapo não lava o pé. Não lava porque não quer. Ele mora lá na lagoa, não lava o pé porque não quer e ainda culpa o sistema, quando a culpa é da PREGUIÇA. Este tipo de atitude é que infesta o Brasil e o Mundo, um tipo de atitude oriundo de uma complexa conspiração moscovita contra a livre-iniciativa e os valores humanos da educação e da higiene!

Karl Marx: A lavagem do pé, enquanto atividade vital do anfíbio, encontra-se profundamente alterada no panorama capitalista. O sapo, obviamente um proletário, tendo que vender sua força de trabalho para um sistema de produção baseado na detenção da propriedade privada pelas classes dominantes, gasta em atividade produtiva alienada o tempo que deveria ter para si próprio. Em conseqüência, a miséria domina os campos, e o sapo não tem acesso à própria lagoa, que em tempos imemoriais fazia parte do sistema comum de produção.

Friedrich Engels: isso mesmo.

Michael Foucault: Em primeiro lugar, creio que deveríamos começar a análise do poder a partir de suas extremidades menos visíveis, a partir dos discursos médicos de saúde, por exemplo. Por que deveria o sapo lavar o pé? Se analisarmos os hábitos higiênicos e sanitários da Europa no século XII, veremos que os sapos possuíam uma menor preocupação em relação à higiene do pé – bem como de outras áreas do corpo. Somente com a preocupação burguesa em relação às disciplinas –domesticação do corpo do indivíduo, sem a qual o sistema capitalista jamais seria possível – é que surge a preocupação com a lavagem do pé. Portanto, temos o discurso da lavagem do pé como sinal sintomático da sociedade disciplinar.

Max Weber: A conduta do sapo só poderá ser compreendida em termos de ação social racional orientada por valores. A crescente racionalização e o desencantamento do mundo provocaram, no pensamento ocidental, uma preocupação excessiva na orientação racional com relação a fins. Eis que, portanto, parece absurdo à maior parte das pessoas o sapo não lavar o pé. Entretanto, é fundamental que seja compreendido que, se o sapo não lava o pé, é porque tal atitude encontra-se perfeitamente coerente com seu sistema valorativo – a vida na lagoa.

Friedrich Nietzsche: Um espírito astucioso e camuflado, um gosto anfíbio pela dissimulação – herança de povos mediterrâneos,certamente – uma incisividade de espírito ainda não encontrada nas mais ermas redondezas de quaisquer lagoas do mundo dito civilizado. Um animal que, livrando-se de qualquer metafísica, e que, aprimorando seu instinto de realidade, com a dolcezza audaciosa já perdida pelo europeu moderno, nega o ato supremo, o ato cuja negação configura a mais nítida –e difícil – fronteira entre o Sapo e aquele que está por vir, o Além-do-Sapo: a lavagem do pé.

John Locke: Em primeiro lugar, faz-se mister refutar a tese de Filmer sobre a lavagem bíblica dos pés. Se fosse assim, eu próprio seria obrigado a lavar meus pés na lagoa, o que, sustento, não é o caso. Cada súdito contrata com o Soberano para proteger sua propriedade, e entendo contido nesse ideal o conceito de liberdade. Se o sapo não quer lavar o pé, o Soberano não pode obrigá-lo, tampouco recriminá-lo pelo chulé. E ainda afirmo: caso o Soberano queira, incorrendo em erro, obrigá-lo, o sapo possuirá legítimo direito de resistência contra esta reconhecida injustiça e opressão.

English: Immanuel Kant Deutsch: Immanuel Kant
English: Immanuel Kant Deutsch: Immanuel Kant (Photo credit: Wikipedia)

Immanuel Kant: O sapo age moralmente, pois, ao deixar de lavar seu pé, nada faz além de agir segundo sua lei moral universal apriorística, que prescreve atitudes consoantes com o que o sujeito cognoscente possa querer que se torne uma ação universal.

Nota de Freud: Kant jamais lavou seus pés.

Sigmund Freud, founder of psychoanalysis, smok...

Sigmund Freud: Um superego exacerbado pode ser a causa da falta de higiene do sapo. Quando analisava o caso de Dora, há vinte anos, pude perceber alguns dos traços desse problema. De fato, em meus numerosos estudos posteriores, pude constatar que a aversão pela limpeza, do mesmo modo que a obsessão por ela, podem constituir-se num desejo de autopunição. A causa disso encontra-se, sem dúvida, na construção do superego a partir das figuras perdidas dos pais, que antes representavam a fonte de todo conteúdo moral do girino.

Carl Jung: O mito do sapo do deserto, presente no imaginário semita, vem a calhar para a compreensão do fenômeno. O inconsciente coletivo do sapo, em outras épocas desenvolvido, guardou em sua composição mais íntima a idéia da seca, da privação, da necessidade. Por isso, mesmo quando colocado frente a uma lagoa, em época de abundância, o sapo não lava o pé.

Soren Kierkegaard: O sapo lavando o pé ou não, o que importa é a existência. George Hegel: podemos observar na lavagem do pé a manifestação da Dialética. Observando a História, constatamos uma evolução gradativa da ignorância absoluta do sapo – em relação à higiene – para uma preocupação maior em relação a esta. Ao longo da evolução do Espírito da História, vemos os sapos se aproximando cada vez mais das lagoas, cada vez mais comprando esponjas e sabões. O que falta agora é, tão somente, lavar o pé, coisa que, quando concluída, representará o fim da História e o ápice do progresso.

Auguste Comte: O sapo deve lavar o pé, posto que a higiene é imprescindível. A lavagem do pé deve ser submetida a procedimentos científicos universais e atemporalmente válidos. Só assim poder-se-á obter um conhecimento verdadeiro a respeito.

Much of Arthur Schopenhauer's writing is focus...
Much of Arthur Schopenhauer’s writing is focused on the notion of will and its relation to freedom. (Photo credit: Wikipedia)

Arthur Schopenhauer: O sapo cujo pé vejo lavar é nada mais que
uma representação, um fenômeno, oriundo da ilusão fundamental que é o meu princípio de razão, parte componente do principio individuationis, a que a sabedoria vedanta chamou “véu de Maya”. A Vontade, que o velho e grande filósofo de Königsberg chamou de Coisa-em si, e que Platão localizava no mundo das idéias, essa força cega que está por trás de qualquer fenômeno, jamais poderá ser capturada por nós, seres individuados, através do princípio da razão, conforme já demonstrado por mim em uma série de trabalhos, entre os quais o que considero o maior livro de filosofia já escrito no passado, no presente e no futuro: “O mundo como vontade e representação”.

Aristóteles. O [sapo] lava de acordo com sua natureza! Se imitasse, estaria fazendo arte . Como [a arte] é digna somente do homem, é forçoso reconhecer que o sapo lava segundo sua natureza de sapo, passando da potência ao ato. O sapo que não lava o pé é o ser que não consegue realizar [essa] transição da potência ao ato.

Platão:

Górgias: Por Zeus, Sócrates, os sapos não lavam os seus pés porque não gostam da água!

Sócrates: Pensemos um pouco, ó Górgias. Tu assumiste, quando há pouco dialogava com Filebo, que o sapo é um ser vivo, correto?

Górgias: Sou forçado a admitir que sim.

Sócrates: Pois bem, e se o sapo é um ser vivo, deve forçosamente fazer parte de uma categoria determinada de seres vivos, posto que estes dividem-se em categorias segundo seu modo de vida e sua forma corporal; os cavalos são diferentes das hidras e estas dos falcões, e assim por diante, correto?

Górgias: Sim, tu estás novamente correto.

Sócrates: A característica dos sapos é a de ser habitante da água e da terra, pois é isso que os antigos queriam dizer quando afirmaram que este animal era anfíbio, como, aliás, Homero e Hesíodo já nos atestam. Tu pensas que seria possível um sapo viver somente no deserto, tendo ele necessidade de duas vidas por natureza,ó Górgias?

Górgias: Jamais ouvi qualquer notícia a respeito.

Sócrates: Pois isto se dá porque os sapos vivem nas lagoas, nos lagos e nas poças, vistos que são animais, pertencem e uma categoria, e esta categoria é dada segundo a característica dos sapos serem anfíbios.

Górgias: É verdade.

Sócrates: precisando da lagoa, ó Górgias meu caro, tu achas que seria o sapo insano o suficiente para não gostar de água?

Górgias: não, não, não, mil vezes não, ó Sócrates!

Sócrates: Então somos forçados a concluir que o sapo não lava o pé por outro motivo, que não a repulsa à água

Górgias: de acordo

Diógenes, o Cínico: Dane-se o sapo, eu só quero tomar meu sol.

Parmênides de Eléia: Como poderia o sapo lavar os pés, ó deuses, se o movimento não existe?

Heráclito de Éfeso: Quando o sapo lava o pé, nem ele nem o pé são mais os mesmos, pois ambos se modificam na lavagem, devido à impermanência das coisas.

Epicuro: O sapo deve alcançar o prazer, que é o Bem supremo, mas sem excessos. Que lave ou não o pé, decida-se de acordo com a circunstância. O vital é que mantenha a serenidade de espírito e fuja da dor.

Estoicos: O sapo deve lavar seu pé de acordo com as estações do ano. No inverno, mantenha-o sujo, que é de acordo com a natureza. No verão, lave-o delicadamente à beira das fontes, mas sem exageros. E que pare de comer tantas moscas, a comida só serve para o sustento do corpo.

Descartes: nada distingo na lavagem do pé senão figura, movimento e extensão. O sapo é nada mais que um autômato, um mecanismo. Deve lavar seus pés para promover a autoconservação, como um relógio precisa de corda.

Nicolau Maquiavel: A lavagem do pé deve ser exigida sem rigor excessivo, o que poderia causar ódio ao Príncipe, mas com força tal que traga a este o respeito e o temor dos súditos. Luís da França, ao imperar na Itália, atraído pela ambição dos venezianos, mal agiu ao exigir que os sapos da Lombardia tivessem os pés cortados e os lagos tomados caso não aquiescessem à sua vontade. Como se vê, pagou integralmente o preço de tal crueldade, pois os sapos esquecem mais facilmente um pai assassinado que um pé cortado e uma lagoa confiscada.

Jacques Rousseau: Os sapos nascem livres, mas em toda parte coaxam agrilhoados; são presos, é certo, pela própria ganância dos seus semelhantes, que impedem uns aos outros de lavarem os pés à beira da lagoa. Somente com a alienação de cada qual de seu ramo ou touceira de capim, e mesmo de sua própria pessoa, poder-se-á firmar um contrato justo, no qual a liberdade do estado de natureza é substituída pela liberdade civil.

Max Horkheimer e Theoror Adorno: A cultura popular diferencia-se da cultura de massas, filha bastarda da indústria cultural. Para a primeira, a lavagem do pé é algo ritual e sazonal, inerente ao grupamento societário; para a segunda, a ação impetuosa da razão instrumental, em sua irracionalidade galopante, transforma em mercadoria e modismo a lavagem do pé, exterminando antigas tradições e obrigando os sapos a um procedimento diário de higienização.

Antonio Gramsci: O sapo, e além dele, todos os sapos, só poderão lavar seus pés a partir do momento em que, devido à ação dos intelectuais orgânicos, uma consciência coletiva principiar a se desenvolver gradativamente na classe batráquia. Consciência de sua importância e função social no modo de produção da vida. Com a guerra de posições – representada pela progressiva formação, através do aparato ideológico da sociedade civil, de consensos favoráveis – serão criadas possibilidades para uma nova hegemonia, dessa vez sob a direção das classes anteriormente subordinadas.

Norberto Bobbio: existem três tipos de teoria sobre o sapo não lavar o pé. O primeiro tipo aceita a não-lavagem do pé como natural, nada existindo a reprovar nesse ato. O segundo tipo acredita que ela seja moral ou axiologicamente errada. A terceira espécie limita-se a descrever o fenômeno, procurando uma certa neutralidade.

Liberal de Orkut (esse indivíduo cada vez mais anônimo): o sapo não lava o pé por ser um indivíduo liberto da opressão estatal. Mas qualquer coisa é só arrumar um emprego público e utilizar o lavado do Leviatã!

SOBRE SEU AUTOR:

O autor deste texto é Carlos Frederico Pereira da Silva Gama e foi publicado pela primeira vez no site Usina de Letras.

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A sombra

Ontem, o frio cortava minhas faces distraídas,

ao passar por um longo corredor sombrio.

Um frio que me lembrava toda a imensa crueldade do mundo.

 

 

Num lance, porém, um calor atravessou meu corpo.

Uma sombra quente, diferente dos fantasmas

que , como todos sabem, trazem ainda mais frio.

A sombra escapou do seu dono por alguns minutos

E se instalou em meu peito

E me acompanhou através do corredor.

 

 

Tão concreto foi, que olhei em volta procurando o dono da sombra

Como se ele me observasse escondido em algum canto.

Mas nada, longe ele estava.

Talvez em alguma encruzilhada

conjurando coisas que ignoramos.

 

 

Senti sua presença mais intensa e o corredor se iluminou

Eu me aqueci e vi você nos rostos de outros que passavam encolhidos.

Vi então a sombra inteira, em pé, mãos nos bolsos da jaqueta preta.

Vi seu cabelo desalinhado, cheiro de banho recém tomado,

Ouvi o som de sua voz chiante dizendo meu nome,

sorrindo para mim como se dissesse “Acorda!”

E eu acordei dessa alucinação compensatória

do vazio de sua ausência.

Depois pensei “é isso que o amor é”.

 

Julio Cortazar

 

Julio Cortázar
Julio Cortázar (Photo credit: Wikipedia)

La vuelta al día en ochenta mundos
Editorial RM – 2010 Rústica – 214 págs. 132 ilustraciones

La solicitud de Arnaldo Orfila a Julio Cortázar de algún texto para publicar en su nueva editorial – Siglo XXI – dio origen a: La vuelta al día en ochenta mundos y Último Round, dos libros que conforman un proyecto compartido con el artista Julio Silva.Julio Cortázar recogió una serie de textos dispersos, algunos ya publicados en revistas difíciles de encontrar o simplemente desaparecidas, tales como: El Corno Emplumado, Eco Contemporáneo, La Revista de la Casa de las Américas,…., y con la ayuda de Julio Silva compuso una especie de collage, suerte de diálogo entre textos e imágenes que conforman dos libros inclasificables y absolutamente imprescindibles en la bibliografía cortazariana y en la literatura latinoamericana del s.XX.La vuelta al día en ochenta mundos se publicó en 1967 y dos años más tarde, en 1969, Último Round. Buena parte de los textos que componen los dos libros, son básicos para comprender la obra de Cortázar, su relación con la música y especialmente con el jazz: Louis enormísimo cronopio, La vuelta al piano de Thelonius Monk, Clifford; con el boxeo: El noble arte, Descripción de un combate; con el humor: De la seriedad en los velorios, Las buenas inversiones, Patio de tarde; con la literatura: Del cuento breve y sus alrededores; con la política: Acerca de la situación del intelectual latinoamericano; con sus –y nuestros- cronopios: Viaje al un país de cronopios; y con el conjunto de su obra: Casilla del camaleón.El diseño de los libros realizado por Julio Silva, convierte los textos en collages y la lectura en uno de los juegos que tanto gustaban a Cortázar.

La vuelta al día en ochenta mundos se asemeja a un viejo almanaque con dibujos procedentes de libros antiguos y fotografías entrelazadas con los textos.

Último Round tiene un formato único, con dos pisos que permiten al lector jugar con los textos y las imágenes de forma múltiple.

Los dos libros sorprenden por su modernidad y por encima de todo están rodeados por la mezcla de humor, libertad y rigor que marca el conjunto de la obra de Julio Cortázar.Las ediciones originales de La vuelta al día en ochenta mundosy Último Round con el diseño de Julio Silva, actualmente son inhallables y son joya preciada de bibliófilos y coleccionistas de libros. Después de más de treinta años sin reimprimirse, RM pone a disposición de los lectores La vuelta al día en ochenta mundos y Último Round en el formato original concebido por Julio Cortázar y Julio Silva.Otras ediciones:

México, Siglo XXI Editores, 1967. Ensayo, poesía y cuentos.

Madrid, Siglo XXI Editores, 1970 (edición de bolsillo, 2 volúmenes).

Madrid, Debate, 1991.Traducciones:

Inglés: Around the day in eighty worlds. Traducción de Thomas Christensen, 1986. San Francisco, North Point Press.

Polaco: W osiemdziesiat swiatow dokola dnia. Traducción de Zofia Chadzynska, 1976. Varsovia, Czyltenik.

Holandés: Reis om de dag in tachtig werelden. Traducción de Barber van de Pol. Ámsterdam, Meulenhoff.

Alemán: Reise um den Tag in 80 Welten. Traducción de Rudolf Wittkopf, 1980. Franfurt, Suhrkamp.

Francés: Le tour du jour en quatre-vingts mondes. Traducción de Laure Guille-Bataillon, 1980. París, Gallimard.

 

 

No princípio era o verbo!

O mal assola a terra.

Viver torna-se um suplício;

O gosto de sangue, um vício.

Espera-se a ajuda do céu ou de irmãos para sempre.

Não se vê nada de novo no fronte, exceto no verbo.

Honra, dignidade e nobreza sempre foram

só palavras que nunca existiram.

Há no ar promessas de um porvir menos perverso,

No qual o holocausto tenha regras.

Projéteis são mais nobres que veneno!

Enquanto algo escapa entre dentes;

Há algo bem diverso nas mentes.

Assim, a sanha nunca arrefece

em frente ao altar de sacrifício.

Aforismos

“Os deuses precisam existir para que nós tenhamos contra quem nos rebelar impunemente!”

“As artimanhas de dominação dos homens são vistas por eles como direitos adquiridos.”

“Nossa identidade reside entre os sins e os nãos que somos capazes de dar”

Thaís de Godoy Morais

Cabeças Trocadas

 No templo da deusa Kali, o odor doce e quente

De pus, sêmen, sangue não causou mais horror

Em Sita, o sulco, do que a imagem

De teus longilíneos ossos a estalarem

Como gravetos secos no inverno em mim!

As cabeças dos dois amigos rolando

Uma ao lado da outra, para saciar a onipresente,

Não têm par com  a imagem dos anelos

De teus cabelos molhados pelo  líquido espesso.

O fervor brutal que animou a espada no templo,

No entanto, é o mesmo que te elevou e levou!

Do teu talhe entalhado em pele resta

Agora o interrompido crânio  quase intacto.

Antes um David, agora um grotesco riso descarnado!

A que Deus sombrio foste imolado?

Em que pensavas?

Contra quem tenho blasfemado?

Nenhum, Nada, Ninguém!

O adiado ódio deste ato não tem para onde correr nem se manifesta,

Assim o sagrado alimento, as águas, os campos se infectam com tuas cinzas.

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SONETO XI

Danilo Sérgio Borges

No sol a pino é que finjo a madrugada

como disse o poeta e o cancioneiro

na ilusão do limite pressinto a estrada

e sou todo liberdade, sou prisioneiro.

 

Essa condição de ser contrário é destarte

e tem um não sei quê de verdade; inteiro

vou me reconhecendo em qualquer parte,

em que não possa mirar-me pelo espelho.

 

E de tanto ser o oposto desta outra face

que ora se-me-veste tanto e tão me serve

assumo este outro rosto que me restou.

 

E quem sabe num instante, o desenlace

deste mistério secreto em mim reserve,

à carne viva do inconsciente, O QUE SOU!

 

São Paulo, 2013.

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Dostoiévski é processado 131 anos após morte

Dostoïevski (1872)
Dostoïevski (1872) (Photo credit: ThomasThomas)

Do UOL, em São Paulo

03/08/2013

Cento e trinta e um anos após sua morte, o escritor russo Fiódor Dostoiévski, um dos maiores nomes da história da literatura mundial, foi processado por incitar o desrespeito a um tribunal. As informações são de reportagem da agência de notícias estatal russa Ria Novasti publicada na quinta-feira (1º).

O processo começou após um morador da longínqua região de Kamchatka, no nordeste da Rússia, usar a palavra “idiota” para se referir a um oponente durante um julgamento, em 2011.

Processado criminalmente por desrespeito ao tribunal, o homem alegou em sua defesa que a “perniciosa influência” da leitura de “O Idiota”, uma das obras-primas de Dostoiévski, publicada em 1869, o havia levado a ofender o adversário, e que o escritor deveria ser investigado por incitá-lo a desrespeitar o tribunal.

Após nove meses de supostas investigações sobre a alegação do homem, o processo foi finalmente arquivado no início deste ano pelo fato de o escritor estar morto desde 1881.

Autoridades judiciais russas são obrigadas a processar todos os requerimentos feitos ao Judiciário, independentemente de parecerem absurdos, segundo uma porta-voz.

O crime de desrespeito a tribunal prevê pena de até seis meses de detenção ou multa de 200 mil rublos (cerca de R$ 14 mil) na Rússia.

Inocentado neste processo, Dostoiévski passou grande parte da vida tendo problemas com a Justiça. Em 1849, o escritor foi condenado à morte junto com outras 19 pessoas por distribuir panfletos contra o governo, mas a sentença foi cancelada na última hora.

Caso tivesse morrido na ocasião, ele não teria escrito seus principais romances, como “Crime e Castigo”, “Irmãos Karamazov” e o livro que teria incitado o desrespeito a tribunal praticado pelo morador de Kamchatka.

Dalton Trevisan vence Camões

por José Antônio Orlando.
Dalton Trevisan
Dalton Trevisan

Há quem já aposte que nem dessa vez ele vai aparecer em público, para manter a mística da reclusão que vem sendo cultivada há mais de meio século. O mais misterioso dos escritores brasileiros, Dalton Trevisan, de 86 anos, foi anunciado hoje, em Lisboa, como vencedor da maior honraria da língua portuguesa, o Prêmio Camões. O júri, formado por dois nomes do Brasil, dois de Portugal e dois africanos (de Moçambique e de Angola), foi unânime na escolha para esta 24ª edição do prêmio.

Contrariando aquele aforismo atribuído a Nelson Rodrigues, a qualidade da literatura de Dalton Trevisan há um bom tempo tornou-se unanimidade. Um dos jurados brasileiros, o escritor Silviano Santiago destacou na justificativa para o Prêmio Camões que a obra de Trevisan apresenta “uma contribuição extraordinária para a arte do conto, em particular para o enriquecimento de uma tradição que vem de Machado de Assis, no Brasil, de Edgar Allan Poe, nos EUA, e de Borges, na Argentina”.
Nascido em Curitiba, em 14 de junho de 1925, Dalton Trevisan estreou na carreira literária aos 20 anos, com “Sonata ao Luar” (1945), coletânea de contos ousada e de qualidade incomum atestada há décadas pelos críticos mais exigentes. O recluso e misterioso Trevisan também é o que se pode chamar de prolífico: publicou mais de 40 livros, a grande maioria de contos, e continua em plena atividade. Seu último livro de inéditos saiu em 2011, com o título “O Anão e a Ninfeta”.
Além de conquistar a distinção máxima do Prêmio Camões, Dalton Trevisan é daqueles escritores que colecionam premiações importantes, entre elas prêmios Jabuti (com “Novelas nada Exemplares”, de 1959, “Cemitério de Elefantes”, de 1964, e “Desgracida”, de 2010), o Prêmio Ministério da Cultura de 1996, pelo conjunto da obra, e o 1° Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em 2003, com o livro “Pico na Veia”. As premiações, contrariando uma prática cada vez mais comum, não provêm de lobby nem de estratégias massivas de marketing. Muito pelo contrário: trata-se de um escritor avesso a entrevistas e a qualquer forma de autopromoção.
A mística da reclusão é o que tem prevalecido. Tanto que, no comunicado oficial do Prêmio Camões, enviado hoje à imprensa, a organização divulgou que não havia conseguido contato com Dalton Trevisan nem para avisá-lo da homenagem e dos 100 mil euros (cerca de R$ 268 mil) a que ele tem direito pela distinção. Não é uma novidade, já que o escritor tem por regra nunca comparecer às cerimônias: para receber os prêmios, sempre enviou representantes.
Todos os vencedores do Camões:
1) 1989: Miguel Torga (poeta e romancista português)
2) 1990: João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)
3) 1991: José Craveirinha (poeta moçambicano)
4) 1992: Vergílio Ferreira (romancista português)
5) 1993: Rachel de Queiroz (romancista brasileira)
6) 1994: Jorge Amado (romancista brasileiro)
7) 1995: José Saramago (romancista português)
8) 1996: Eduardo Lourenço (crítico literário e ensaísta português)
9) 1997: Pepetela (romancista angolano)
10) 1998: Antonio Cândido (crítico literário e ensaísta brasileiro)
11) 1999: Sophia de Mello Breyner Andresen (poeta portuguesa)
12) 2000: Autran Dourado (romancista brasileiro)
13) 2001: Eugénio de Andrade (poeta português)
14) 2002: Maria Velho da Costa (romancista portuguesa)
15) 2003: Rubem Fonseca (romancista brasileiro)
16) 2004: Agustina Bessa Luís (romancista portuguesa)
17) 2005: Lygia Fagundes Telles (romancista brasileira)
18) 2006: José Luandino Vieira (escritor angolano; recusou o Prêmio Camões)
19) 2007: António Lobo Antunes (romancista português)
20) 2008: João Ubaldo Ribeiro (romancista brasileiro)
21) 2009: Armênio Vieira (escritor de Cabo Verde)
22) 2010: Ferreira Gullar (poeta brasileiro)
23) 2011: Manuel António Pina (poeta, cronista, dramaturgo e romancista português).
24) 2012: Dalton Trevisan (contista e cronista brasileiro).
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