Os dois reis e os dois labirintos

OS DOIS REIS E OS DOIS LABIRINTOS

(Jorge Luis Borges)

 

Contam os homens dignos de fé (mas Alá sabe mais) que nos primeiros tempos houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu seus arquitetos e magos e os mandou construir um labirinto tão desconcertante e sutil, que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. A obra era um escândalo, porque a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus, e não dos homens. Com o passar do tempo veio à sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade do hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde perambulou ofendido e confuso até o cair da tarde. Então implorou socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa alguma, mas disse ao rei da Babilônia que ele na Arábia também tinha um labirinto que, se Deus fosse servido, lhe daria a conhecer algum dia. Depois voltou à Arábia, reuniu seus capitães e alcaides e devastou os reinos da Babilônia com tamanha boa sorte que arrasou seus castelos, dizimou sua gente e aprisionou o próprio rei. Amarrou-o em cima de um camelo veloz e o levou para o deserto. Cavalgaram três dias, e disse-lhe: “Ó rei do tempo e substância e cifra do século!, na Babilônia desejaste que eu me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; o Poderoso teve por bem que eu agora te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros para impedir a passagem”.

 

Logo depois, desamarrou-o e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.

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A estante deslocada V

 

Rafael F. Carvalho

            Um amigo meu estava de mudança e pediu para eu guardar um de seus quadros. Era um quadro que mostrava pequenos veleiros ancorados. Toda a vez que eu o visitava, aqueles barcos estavam lá, com suas velas abaixadas. Não neguei seu pedido, levei o quadro para ficar em minha casa. Um quadro não deve ficar guardado, nem no chão. Peguei um prego e um martelo. Ele começou a ser parte de tudo. Os veleiros ficaram comigo até eu perder a conta dos dias desde que foram erguidos. Passei muito a estimá-los. Um dia meu telefone tocou, havia uma voz dentro dele dizendo que queria o quadro de volta. Minha parede ficou vazia dos veleiros que esperavam seus marinheiros. Ao olhar a mancha do quadro na parede, desci a serra em direção ao mar em busca de veleiros, e naveguei para o nunca mais.

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Estante deslocada IV

Rafael F. Carvalho

Quando eu era pequeno, houve uma terrível seca em nossa terra. Nenhuma planta sobreviveu, exceto a figueira. Nada mais cresceu, nem hortas nem outras frutas. Só podíamos cultivar figos, logo eu, que sempre detestara figos. Talvez fosse um castigo divino, uma vingança ou um aprendizado que deveríamos passar, mas só me lembro dos figos. Nem mesmo por necessidade eu conseguia gostar de figos. Com o passar dos anos minha família ficou conhecida pelos figos que produzíamos, vendemos figos para pessoas que vinham de lugares muito

distantes. Eu aprendi a plantar, cuidar, proteger das pragas, colher, guardar e vender. Se perguntavam se ele era bom, eu dava um pedaço para experimentar, não tinha outro jeito de saber se eram bons. Todos gostavam e compravam sem mais perguntar. O único figo que comi foi um que não coube na cesta e fiquei com pena de jogar fora. Hoje tenho muitas figueiras e sou conhecido por aquilo que detesto.

 

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A Estante Deslocada III

Rafael F. Carvalho

         A vida se resume a momentos, simples como um dia que se vive bem, quando as horas passam sem percebê-las. Não quero a felicidade contínua, desejo um dia em que eu possa dizer: “hoje foi um dia bem vivido”. Se tudo fosse tão fácil assim! Quero que as semanas e os dias sejam plenos. Que tristeza procurar o impossível… trato eu de viver o dia com completude, pois o futuro está programado com a ressalva de saber que sou um homem de momentos. Sou um homem de momentos e realizo-me nas sementes que planto diariamente. Se alguém oferece algo, sem eu saber de nada, aceito de imediato. Se alguém oferece algo daqui a anos-luz, aceito de imediato igualmente. Sou um homem de imediatismos e programação, ambos sentam na mesma mesa como a coisa mais diária possível, fartando-se igualmente. Há dias em que alguns minutos valem por toda a vida e isso vale. Posso andar semanas em desertos monótonos para ver apenas uma pequena palmeira, posso navegar semanas em oceanos monótonos para chegar a uma ilha e nela permanecer poucas horas. Tenho apreço à gota d’água que cai no lago, mais que a um imenso diamante. Quando percebo, pequenas pedras brilhantes escorrem das árvores que plantei e o meu passado brilha com uma força descomunal.

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A Estante Deslocada

Rafael F. Carvalho

Eu tenho uma estante de livros. A maioria deles foram sequer abertos, mas eles sempre estiveram comigo. Podia tê-los jogado fora ou dar de presente. Os livros não eram meus, pertenceram ao meu pai e à minha mãe. Alguns eram mais velhos do que eu e eu briguei por eles. Sequer abertos. Peguei uma vassoura e uma pá para limpar atrás da estante e assim, desloquei-a, tomando cuidado para não deixar os livros cair. Demorei quase uma hora para movê-la, mas não consegui colocar de volta. Anos passaram e a estante deslocada permaneceu em seu não-lugar, no meio de tudo.

Para conhecer mais contos deste autor consulte a REVISTA SAMIZDAT

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