Ausência

Vinícius de Moraes

Eu deixarei que morra em mim o desejo

de amar os teus olhos que são doces

Porque nada te poderei dar senão a magoa

de me veres eternamente exausto.

No entanto a tua presença é qualquer coisa

como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe

o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser

tudo estaria terminado.

X

Quero só que surjas em mim

como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma

gota de orvalho nesta terra amaldiçoada

Que ficou sobre a minha carne

como nódoa do passado.
Eu deixarei… tu irás e encostarás

a tua face em outra face.

X

Teus dedos enlaçarão outros dedos

e tu desabrocharás para a madrugada.

Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,

porque eu fui o grande íntimo da noite.

Porque eu encostei minha face na face

da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos

da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa

essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros

nos portos silenciosos.

X

Mas eu te possuirei como ninguém

porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar,

do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente,

a tua voz serenizada.

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Era de se esperar…

Luciane Reciere

Era de se esperar. Era sabido. E compreensível que nada ali tivesse pé nem cabeça. Quebra-cabeça faltando peças, livro faltando páginas. Dia sem graça e escuro feito noite velha, e de fato não era mais dia, era noite que tinha daquela vocação de viver muito. Das flores se soube mais tarde que eram sempre-vivas, com aquele arzinho seco de coisa que morreu e ninguém sepultou. Afastaram os móveis e espalharam cadeiras. Esperava que alguém dançasse? Encostaram as cadeiras nas paredes e passaram a noite naquele zum-zum abafado de diálogo ensaiado. Não se serviu nada, nem água, nem licor. A roupa era a de sempre, sem cor nem brilho e as mãos sempre frias tateavam o escuro a procurar algum sentido naquele amontoado de gente sem rosto e sem conversa. Subiu as escadas sem olhar onde pisava e deixou um pouco pra trás, mesmo que ninguém quisesse parte daquilo.

Foto por Elu012bna Aru0101ja em Pexels.com

Uma vez li que as formigas…

Luciane Reciere

Uma vez li que as formigas espreguiçam ao acordar (e essa foi a informação mais linda que eu poderia ter), desde esse dia, comecei a praticar o espreguiçamento como arte marcial. As formigas planejam futuros, isso eu não aprendi e por isso as invejo: exploda o mundo ou não, estarão em comunhão com os seus. Estocados os víveres, se reunirão para longas conversas e ideias de revoluções impossíveis em torno das fogueiras subterrâneas. Enquanto a rainha abastece seu exército, há algumas formigas que sonham, mesmo sem saber que talvez o inverno não aconteça.
Além do mais, não têm o peso da alma. Se morrem, é para sempre e sempre haverá outra formiga para recolher sua carcaça para o sepultamento ou compostagem.
Eu. Invejo. As formigas.

Foto por Egor Kamelev em Pexels.com