Bares, cafés e clubes, a partir do século XIX, não eram apenas um ambiente para a happy hour. Eles foram o cenário onde questões políticas, filosóficas, movimentos artísticos revolucionários se espalharam. O propósito deste site é o mesmo: criar um espaço virtual para expressão livre de ideais, reflexões e sentimentos, com espírito crítico em relação a nossa Cultura.
Vem e traz a taça, copeiro, derrama e circula esse vinho! Porque o amor parecia fácil, mas logo veio o descaminho.
A brisa sopra em seu rosto, traz o almíscar dos seus cabelos: Como sangram os corações, por esse momento tão ínfimo.
Tinge com vinho o teu tapete, se assim disser o velho mago. Deve entender, o peregrino, as leis e estâncias do caminho.
Na estância do meu bem-amado, como posso encontrar alento? Ora já bradam os cincerros: a caravana está partindo.
As trevas e as ondas ferozes, o vendaval e o turbilhão! Que sabe desse nosso estado, quem vê da terra o mar bravio?
Desejos guiaram meus feitos, e meu bom nome foi desfeito! Como manter esse segredo, se nos saraus já é sabido?
Se ainda queres sua presença, ó Hafiz, não te escondas dele! Quando lograres encontrá-lo, faz do mundo um desconhecido.
É emblemático que esse poema seja o primeiro do Divã, pois encapsula bem a poética hafiziana, servindo como uma boa introdução ao seu universo. O objeto central do poema são as dificuldades e tribulações do poeta e amante (DE BRUIJN, 2002, s.p.) no caminho do amor – seja ele profano ou espiritual (DE FOUCHÉCOUR, 2006, p. 85) – e o eu lírico pode ser tanto alguém com dificuldades amorosas, um místico em busca de Deus ou um poeta em busca de inspiração. Tendo em vista as ambiguidades que Hafiz parece fazer questão de inserir em seus versos, eu diria que as três interpretações são igualmente válidas.
* Nicolas Thiele Voss de Oliveira. Paraíso e embriaguez: tradução comentada de gazéis de Hafiz de Xiraz
* Excertos do livro “Vício: o reino dos fantasmas famintos”
Estou a caminho do St. Paul’s Hospital. Também trabalho lá, na ala psiquiátrica. Sigo a rota habitual: saio da garagem do Portland, viro à esquerda na viela para a Abbott, entro à direita para a Pender. Dois quarteirões depois da Abbott, meu coração acelera quando me aproximo da Sikora’s – sem dúvida uma das melhores lojas de música clássica do mundo. Pensamentos sobre um CD de ópera do tenor Rolando Villazón agitam minha mente e meu corpo. Escutei algumas faixas ontem, quando fui à loja para pagar minha última fatura, mas resisti à ânsia de comprar o disco. Hoje, ele clama que eu volte e o leve para casa. Preciso dele, e preciso agora. O desejo surge primeiro como um pensamento e logo se transforma num objeto concreto na minha mente, com peso e atração. Gera um campo gravitacional irresistível. A tensão só é aliviada quando cedo. Uma hora depois, saio da Sikora’s com o disco de Villazón e vários outros. Olá, meu nome é Gabor e sou um comprador compulsivo de música clássica. Pausa para esclarecimento: não equiparo minha obsessão por música aos hábitos potencialmente letais dos meus pacientes do Portland. Longe disso. Meu vício é fichinha perto do deles. Também tive muito mais liberdade para tomar decisões na minha vida, e ainda tenho. Porém, se as diferenças entre meu comportamento e a autossabotagem dos meus pacientes são óbvias, as semelhanças são reveladoras – e uma lição de humildade. Com o tempo, comecei a encarar o vício não como uma entidade definida e concreta – um caso de “ou você tem, ou não tem” –, mas como um grande e sutil espectro. Suas principais características estão presentes em todos os adictos, desde o workaholic aplaudido pela sociedade até o viciado em crack pobre e criminalizado que assombra a periferia. Em algum ponto desse espectro estou eu. Nos últimos dois meses, fui à Sikora’s várias vezes por semana – sem mencionar as breves incursões à Magic Flute, na Fourth Avenue, e os pulinhos na Sam the Record Man e na HMV, em Toronto, durante uma viagem a trabalho. Também fui à Tower Records, em Nova York, antes que a loja fechasse as portas de vez. No momento, meados de fevereiro, já gastei 2 mil dólares em CDs de clássicos desde a virada do ano.
Vício em comida ultraprocessada
Quebrei minha promessa de parar de comprar compulsivamente, feita com o máximo de arrependimento para minha esposa, Rae, após ter gastado mil dólares antes e depois do Natal. Todo santo dia fico obcecado com os discos que desejo comprar e passo horas imerso em textos sobre música clássica na internet – tempo que poderia ser dedicado à minha família ou a escrever este livro, cujo prazo de entrega rapidamente se aproxima. Só que sou seduzido sempre que um crítico diz “todo verdadeiro amante de música sinfônica/coral/piano precisa dessa coletânea”. De repente, não consigo mais imaginar minha vida sem aquele concerto sinfônico de Dvořák, sem aquela versão da Missa em Si Menor de Bach, sem aquela interpretação das Sinfonias de Paris de Haydn em instrumentos de época. Não consigo suportar mais nem um momento sem os Prelúdios de Rachmaninov, sem Le Nozze di Figaro, sem as Bachianas Brasileiras ou sem a última coleção da música de câmara de Shostakovich. É imprescindível ter mais um box de 14 CDs – o quinto que compro – de O anel do Nibelungo, de Wagner, e novas versões de violino ou violoncelo solo de Bach. Hoje, enquanto escrevo isto, preciso comprar L’Arte del Violino de Locatelli, Garden of Spaces de Rautavaara, as Variações Diabelli, a mais recente interpretação das Variações Goldberg em espineta de Pierre Hantaï, os concertos completos de violino de Schnittke, ou de Henze, ou de Mozart… Leio, escrevo, como e até durmo com música nos ouvidos. Não consigo passear com o cachorro sem uma sonata, uma sinfonia, uma ária tocando em meus fones. Meus pensamentos, sentimentos e debates internos sobre música clássica são o que me acorda pela manhã e embala meu sono à noite. Beethoven compôs 32 sonatas para piano. Tenho cinco gravações completas delas – e já me desfiz de 10, algumas tendo sido recompradas e doadas mais de uma vez. Armazenadas em algum lugar do nosso sótão estão duas coleções que nunca mais escutarei. Tenho cinco versões completas dos 16 quartetos de corda de Beethoven e seis coleções das nove sinfonias. Cheguei a ter quase todos os concertos sinfônicos de Beethoven gravados e lançados em CD, incluindo três que não me agradaram e foram parar no sótão. Se neste exato momento eu pusesse para tocar todos os discos com composições de Beethoven que coleciono em minhas prateleiras – e não fizesse mais nada –, levaria semanas para escutar tudo. E estou falando apenas de Beethoven. Muitos dos CDs nas minhas prateleiras fizeram apenas visitas breves ao meu aparelho de som, se é que os escutei. Outros nunca foram abertos, esperando feito órfãos na estante. Rae fica desconfiada. “Você anda obcecado com essas compras?”, me perguntou ela várias vezes nas últimas semanas. Olho nos olhos dessa que é minha companheira de vida há 39 anos e minto. Digo a mim mesmo que não quero deixá-la preocupada, mas não é nada disso. Tenho medo de perder seu afeto. Não quero que ela pense mal de mim. Temo sua raiva. É isso que tento evitar. Já dei sinais; quase como se quisesse ser pego. – Você parece estressado – comentou ela certa noite, no início de janeiro. – Pois é, são todos esses CDs – respondi. Ela me fitou e fui tomado na mesma hora pela vergonha. – Quer dizer, são todos esses CVs que preciso mandar por e-mail – menti. A culpa devia estar estampada na minha testa. Nem sei como consegui disfarçar. Por um instante cogitei confessar tudo, como sempre acabo fazendo. Na semana seguinte, no café da manhã, ergo os olhos do jornal. – Ah – comento com Rae –, a Ópera de Vancouver vai apresentar Don Giovanni em março. – Don Giovanni… – reflete Rae. – Não conheço essa. É sobre o quê? – É a história de Don Juan, o mulherengo compulsivo. Ele é um homem criativo, charmoso, cheio de energia. Um aventureiro ousado, mas moralmente covarde, que nunca encontra paz interior. Sua paixão erótica é insaciável: não importa quanto seja consumada, ele permanece inquieto e insatisfeito. E seu talento poético e seu ímpeto dominador só aumentam sua necessidade incansável de possuir. Ele está sempre em busca da próxima aquisição, até lista todas as suas conquistas amorosas num caderno. Ele encontra muitas, muitas oportunidades de salvação, mas ignora todas. Atormenta os outros e sacrifica a própria alma. Zomba do arrependimento e, no fim, é arrastado para o inferno. Rae me encara com um olhar de surpresa – ou seria de cumplicidade? – Que descrição eloquente – diz ela. – Você deu vida ao personagem. Dá para perceber quanto gosta da história. É verdade, gosto – comprei quatro versões dessa obra-prima de Mozart no mês passado para se juntarem às duas que eu já tinha. Nunca escutei nenhuma do começo ao fim. E estou mentindo, escondendo isso tudo de Rae. Na verdade, sou um Don Giovanni em escala menor, menos charmoso: traio com óperas, não com mulheres. Algumas pessoas talvez achem difícil entender como o desejo de ter seis versões de Don Giovanni pode ser chamado de vício. Qual é o problema de amar música, de ter paixão por uma grande arte, por uma experiência sublime? Nós, humanos, precisamos de arte e beleza em nossa vida. Na verdade, é isso que nos torna humanos. O que nos diferencia de nossos finados primos neandertais é nossa capacidade de nos expressar simbolicamente, de representar experiências em termos abstratos. Essa parte do córtex pré-frontal não se desenvolveu no cérebro neandertal. Se tivesse sobrevivido mais um milhão de anos, a espécie não poderia ter gerado um Mozart. Então, no fim das contas, não é humano desejar beleza? Ou até ansiar por ela? E eu adoro música. É a forma mais imediata e abstrata de arte, capaz de se comunicar sem palavras ou imagens visuais. Para mim, pelo menos, é a forma mais pura de expressão artística. Com ou sem palavras, as canções falam com eloquência sobre perda e alegria, dúvida e certeza, desespero e inspiração, desejo carnal e divindade transcendente. A música me desafia, me empolga, me preenche, me emociona, amolece meu coração. Desperta dentro de mim emoções há muito adormecidas em outros aspectos da vida.
Como Thomas De Quincey escreve em Confissões de um comedor de ópio, a música tem o poder de fazer com que as paixões da vida sejam “exaltadas, espiritualizadas, sublimadas” – mesmo que De Quincey achasse que precisava usar ópio para apreciar isso tudo. Então, sim, sou apaixonado por música – mas também sou viciado, algo que faz parte de um conjunto ontológico completamente diferente. Vícios, mesmo que pareçam vontades humanas normais, giram mais em torno de desejo do que de conquista. No modo viciado, a carga emocional está na busca e na aquisição do objeto desejado, não na posse e na alegria que ele traz. O maior prazer é encontrado na satisfação momentânea da ânsia. O vício básico diz respeito à experiência transitória de não ter vício. O adicto anseia pela ausência do estado de ânsia. Por um breve momento ele é libertado do vazio, do tédio, da falta de sentido, do desejo, da compulsão, do sofrimento. Ele fica livre. Sua escravidão ao mundo exterior – à substância, ao objeto ou à atividade – consiste na impossibilidade, na cabeça dele, de encontrar dentro de si a liberdade para a ânsia ou a irritação. “Não quero nada e não temo nada”, disse Zorba, o Grego. “Sou livre.” Não há muitos Zorbas entre nós. No meu modo viciado, a música ainda empolga, mas é incapaz de me libertar da necessidade de comprar e adquirir mais e mais. Seu fruto não é alegria, mas insatisfação. A cada CD me iludo dizendo que minha coleção agora está completa. Se eu puder ter só aquele – só mais um –, poderei descansar, satisfeito. É assim que funciona a ilusão. “‘Só mais um’ é o conector no círculo de sofrimento”, escreve o monge budista e professor Sakyong Mipham.1 Meu momento mais puro de liberdade acontece depois que estaciono o carro, sigo correndo para a Sikora’s, diminuo um pouco o passo antes de entrar e respiro fundo enquanto abro a porta. Nesse milésimo de segundo, a vida tem um milhão de possibilidades. “Só é possível perceber o infinito na música quando se busca essa qualidade em si mesmo”, escreve o pianista e maestro Daniel Barenboim.2 Com certeza. Mas esse não é o tipo de infinito que o viciado busca. No fim das contas, o que eu desejo é a adrenalina, junto com as preciosas substâncias químicas recompensadoras que inundarão meu cérebro quando eu segurar o novo CD, sentindo o alívio extremamente temporário da minha compulsão. Mas assim que saio da loja a adrenalina volta a circular pelo meu corpo e minha mente se concentra na próxima compra. Qualquer um que seja viciado em qualquer tipo de busca – sexo, compras, jogos de azar – está atrás da mesma dose de substâncias químicas interiores. Esse comportamento ocorre há décadas, desde que meus filhos eram… Espera. “Esse comportamento ocorre”? Que jeito elegante de me afastar da situação, como se minha atitude fosse um ser independente. Não, eu faço isso há décadas, desde que meus filhos eram pequenos. Passei muitos anos investindo milhares de dólares em CDs. Às vezes gastava centenas de dólares em uma ou duas horas. Meu recorde foi gastar quase 8 mil dólares em uma semana. Só escapei da ruína financeira por ser um médico dedicado (leia-se workaholic) e muito admirado pelo mundo. Como já escrevi em algum momento, para mim era fácil justificar os gastos como uma recompensa pelo trabalho duro que eu fazia: um vício oferecendo álibi para outro.* * Este parágrafo e vários outros neste capítulo foram adaptados de Scattered Minds [Mentes dispersas], livro que escrevi sobre TDAH (Vintage Canada, 2000). A parte confusa é a seguinte: ambas as dependências comportamentais representavam características verdadeiras minhas, cada uma distorcida até sair de proporção. Meu vício em músicas e livros podia ser disfarçado como uma paixão por arte, e meu vício em trabalho, como um serviço à humanidade – e de fato sou apaixonado por arte e desejo servir à humanidade. Não sou o único sujeito no mundo encantado por música clássica e estou longe de ser o único que possui várias gravações de obras-primas. Então todos esses outros entusiastas também são adictos? Não, nem todos, mas muitos são – eu os encontro nas lojas e leio seus comentários na internet. Adictos se reconhecem. Qualquer paixão pode se tornar um vício; mas então como distinguir as duas coisas? A pergunta principal é: quem está no comando, o indivíduo ou seu comportamento? É possível dominar uma paixão, porém uma paixão obsessiva e incontrolável é um vício. E o vício é o comportamento que uma pessoa continua tendo com frequência, apesar de saber que está prejudicando a si mesma e/ou aos outros. A maneira como se expressa externamente é irrelevante. A questão é o relacionamento interior de uma pessoa com a paixão e seus comportamentos. Se estiver na dúvida, faça a si mesmo uma simples pergunta: “Considerando os danos que estou causando a mim e aos outros, estou disposto a parar?” Caso a resposta seja não, você é um viciado. Se não consegue renunciar ao comportamento nem manter sua palavra quando tenta fazer isso, você tem um vício. Existe, é claro, uma camada mais profunda, mais sólida, por baixo de todo tipo de vício: um estado de negação no qual, contra qualquer lógica e evidência, a pessoa se recusa a reconhecer que está fazendo mal a si mesmo ou a outra pessoa. No estado de negação, a pessoa resiste por completo a qualquer tipo de questionamento. Mas, se quiser mesmo saber a resposta, olhe ao seu redor. Depois de concretizar sua paixão, você se torna mais próximo das pessoas que ama ou mais isolado? Você se sente mais autêntico ou mais vazio? A diferença entre paixão e vício é aquela entre uma faísca divina e uma chama que queima. O fogo sagrado pelo qual Moshe (Moisés) sentiu a presença de Deus no monte Horebe não queimou o arbusto de onde saía: E o mensageiro de YHWH foi visto por ele na chama de um fogo em meio a um arbusto. Ele viu: aqui, o arbusto arde em chamas, e o arbusto não é consumido!3 A paixão é o fogo divino: ela dá vida e torna sagrado; ela oferece luz e gera inspiração. A paixão é generosa porque não é motivada pelo ego; já o vício é egoísta. A paixão dá e enriquece; o vício rouba. A paixão é uma fonte de iluminação e verdade; os comportamentos do vício nos arrastam para a escuridão. Você se torna mais vivo quando está apaixonado e encontra o triunfo mesmo que não alcance seu objetivo. Mas um vício exige um resultado específico que alimente o ego; sem esse resultado, o ego se sente vazio e desprovido. Uma paixão avassaladora e irresistível, independentemente das consequências, é um vício. Talvez você até dedique sua vida inteira a uma paixão, mas o fará com liberdade e alegria, seguindo completamente seus valores e sua verdade. No vício, não há alegria, liberdade nem virtude. O viciado espreita, envergonhado, os cantos sombrios de sua própria existência. Vejo a vergonha no olhar dos meus pacientes viciados e, em sua vergonha, vejo um reflexo da minha. O vício é a imagem sombria da paixão e, para um observador ingênuo, sua imitação perfeita. Ele remete à paixão em sua urgência, em sua promessa de satisfação, mas seus presentes são ilusórios. É um buraco negro. Quanto mais você oferece ao vício, mais ele exige. Ao contrário da paixão, sua alquimia não cria novos elementos, apenas degrada tudo aquilo em que toca e o transforma em algo inferior, mais barato. Será que fico mais feliz depois de ceder às minhas compulsões autoindulgentes? Como um Scrooge furtivo, repasso e catalogo mentalmente minhas últimas compras, curvado e esfregando as mãos num gesto de alegria consumista, o coração tornando-se ainda mais frio. Após um surto de compras, não sou um homem satisfeito. O vício é centrífugo. Suga nossa energia, criando um vácuo de inércia. Uma paixão nos energiza e enriquece nossos relacionamentos. Ela nos empodera e dá força aos outros. A paixão cria; o vício consome – primeiro o hospedeiro, depois os outros dentro de sua órbita. O famoso musical A pequena loja dos horrores é uma metáfora brilhante sobre o vício. Seymour, um sujeito comum que trabalha como vendedor numa floricultura (interpretado por Rick Moranis no filme de 1986), fica com pena de uma plantinha “estranha e diferente” que está morrendo de desnutrição. Ela atrai uma nova clientela muito necessária para a loja, mas há um problema. Ninguém consegue entender do que se alimenta essa planta (batizada de Audrey II, em homenagem à amada de Seymour), até a noite em que ele acidentalmente fura um dedo e a planta engole com avidez as gotas de sangue que pingam da ferida. Saciada por um breve momento, a planta quer mais, e Seymour obedientemente oferece outra dose de seu precioso plasma. A planta então adquire voz e personalidade próprias. Implora e lisonjeia, prometendo que será escrava de Seymour. E dá uma ordem abrupta: “Me alimente, Seymour!” Apavorado, o homem obedece. A planta cresce e se torna cada vez mais faminta, enquanto Seymour enfraquece e fica anêmico – no sentido físico e moral. Quando parece que a fonte de Seymour vai secar (literalmente), ele tem a ideia de alimentar a planta com cadáveres humanos e encontra uma nova vocação: matar pessoas. No final, Seymour é obrigado a travar uma batalha heroica contra a sanguinária Audrey II. Empenhada em conquistar e dominar, a planta não se dá nem mais ao trabalho de fingir uma amizade. O mesmo acontece com o vício. Começando apenas com as poucas gotas de sangue que você está disposto a doar no começo, ele logo consome o suficiente para dominar e controlar você. Então passa a atacar as pessoas ao seu redor, e é preciso lutar para derrotá-lo. Eu me perco quando estou preso numa das minhas espirais de vício. Aos poucos minha força moral se esvai e me sinto vazio. Meus olhos exibem apenas o vácuo. Tenho medo de que até meus amigos na Sikora’s, aqueles que me vendem o que desejo, enxerguem o que há por trás da minha máscara frágil. Não há nada por trás da fachada além de um organismo que pulsa por gratificação. Não sou um amante de música diante do balcão, mas um fracote desprezível. Sinto a pena que sentem de mim. A todo lugar que vou, sinto que interpreto um personagem. Os enfermeiros no St. Paul’s me perguntam como estou. “Bem”, respondo. “Estou bem.” O que nunca digo é: “Estou obcecado. Acabei de sair da loja de discos e mal posso esperar o fim do expediente para voltar correndo ao meu carro e escutar tal ópera ou sinfonia. Então, a menos que eu vá comprar mais coisas na loja, irei para casa e mentirei para minha esposa. E estou me sentindo muito culpado. É assim que estou.” Comentários autodepreciativos, pessimistas ou negativos se infiltram em minhas conversas. Alguém na ala elogia meu trabalho e reajo a isso com uma piada: “Ah, de vez em quando consigo fingir competência.” Mas não é uma piada. A pessoa me lança um olhar estranho e diz que está falando sério. É claro que está, mas, em meio à minha vergonha, não acho que mereço ser elogiado. Rebater elogios faz parte de ter um vício secreto. Vou me tornando cada vez mais cético em relação ao mundo – sobre a política, as pessoas, as possibilidades, o futuro. Toda manhã resmungo para o jornal, insatisfeito com o que ele informa ou deixa de informar. O The Globe and Mail, com suas notícias, editoriais e colunas de opinião, favorece corporações, partidos e políticos neoconservadores pelo mundo. Só que o bom e velho Globe só está seguindo suas origens capitalistas, de sangue azul. Continua sendo o melhor jornal do Canadá e a decisão de continuar pagando a assinatura é minha. Então por que me enfureço com ele enquanto tomo café? Minha negatividade vem da minha insatisfação interior, das minhas autocríticas severas. O Globe não expressa aquilo em que acredito? Nem eu. O Globe justifica a ganância egoísta e exime a desonestidade? Olha só quem está falando. Quem dera se a negatividade se resumisse ao meu relacionamento conturbado com a mídia impressa. Não, eu vou me tornando cada vez mais crítico, irritado e moralista com minha filha adolescente. Quanto mais cedo aos meus impulsos, mais a julgo. Não posso ser otimista e acreditar no desenvolvimento dela quando sei que estou sabotando o meu. Como posso enxergar o melhor nela quando não consigo ver nada além do pior em mim mesmo? Nossas interações são tensas. Com 17 anos, ela já tem um vasto repertório de palavras e gestos para comunicar seu descontentamento. Minha relação com Rae vai perdendo a vitalidade. Como meu mundo interior é dominado pela obsessão, tenho pouco a dizer, e o que digo soa falso até aos meus ouvidos. Já que estou focado em mim mesmo, a atenção que dedico a ela acaba se tornando uma obrigação. Quando entro num dos meus ciclos de vício, é quase como se eu estivesse tendo um caso extraconjugal, repleto de obsessões, mentiras e manipulações. Acima de tudo, eu me torno ausente. É impossível estar presente por inteiro quando crio barreiras para me esconder. A intimidade e a espontaneidade são sacrificadas. Algo precisa ficar de lado, e fica – às vezes por dias, semanas e meses. Quando meus filhos eram muito mais novos, eu os deixava esperando ou os apressava de acordo com meus objetivos. Se pudesse, eu apagaria da memória a ocasião em que deixei meu filho de 11 anos numa loja de revista em quadrinhos após uma partida de futebol, com um de seus colegas de time. “Volto em 15 minutos”, falei. Demorei quase uma hora para voltar. Não dei só um pulinho na loja do outro lado da rua; também dirigi até outra, no centro da cidade, em minha busca pelo que, na hora, era o disco que eu precisava ter. Quando finalmente me viu de volta na porta da loja, o rosto do meu filho estava tomado por ansiedade e espanto. Menti diariamente para minha esposa por semanas e meses. Eu entrava correndo em casa, escondendo minhas últimas compras na varanda, fingindo estar presente e calmo. Mas, por dentro, eu só conseguia pensar em música. Quando me pegavam no flagra, como sempre acontecia, eu fazia confissões arrependidas e promessas que logo seriam quebradas. Eu me odiava, e o asco que sentia por mim mesmo se manifestava na maneira ríspida, controladora e crítica com que lidava com meus filhos.
Vício em trabalho é socialmente aceito
Quando estamos preocupados em suprir nossas necessidades falsas, não suportamos ver as necessidades reais de outras pessoas – muito menos de nossos filhos. Talvez o fundo do poço (mas com certeza não o fim) dos meus anos de vício tenha sido quando abandonei uma mulher em trabalho de parto para ir rapidinho até a Sikora’s no trânsito do meio-dia. Eu até teria conseguido voltar ao hospital a tempo para o parto se não tivesse começado a procurar outros discos. Murmurei um pedido de desculpas quando retornei, mas não dei qualquer explicação. Todos foram muito compreensivos, até a paciente decepcionada. Afinal de contas, o Dr. Maté é um homem ocupado. Ele não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Em Vancouver, eu tinha a reputação de ser um médico que se dedicava muito às pacientes grávidas e lhes oferecia todo o apoio do mundo durante o parto. Não dessa vez. Aquela bebê nasceu sem mim. (Seu nome é Carmela. Ela é uma linda universitária e dançarina de 20 anos. Contei a história toda para sua mãe, Joyce, muitos anos atrás.) Essa não é a primeira “confissão” pública que faço. Já escrevi e falei sobre meus vícios antes. E a verdade é que, enquanto escrevo isto, nem a admissão pública sobre meu comportamento nem a compreensão total do seu impacto sobre mim e minha família me impedem de repetir o ciclo. Escrevi três livros e recebo cartas e e-mails de leitores do mundo todo, me agradecendo por tê-los ajudado a transformar a própria vida. Ainda assim, continuo adotando padrões de comportamento que me pesam a alma, afastam meus entes queridos e sugam minha vitalidade.* * Desde que escrevi este capítulo, em fevereiro de 2006, mudei consideravelmente minha relação com meus hábitos compulsivos. Falarei mais disso adiante. Em janeiro de 2006, enquanto enfrento uma persistente obsessão por CDs, Sean entra choramingando no meu consultório. – Fiz besteira – diz ele. – Estou vomitando e com diarreia. Usei heroína… Ai, cara… Sean tinha passado meses numa casa de reabilitação. Eu não o via fazia muito tempo, mas ele telefonava com regularidade, relatando com orgulho seu progresso e a determinação de continuar limpo. Certa vez, deixou um recado na minha caixa postal: “Estou ligando para agradecer por toda a sua ajuda. Eu só queria dizer obrigado, cara.” Agora ele está de volta a Downtown Eastside, pálido, desarrumado, fraco, sujo. Faz semanas que está em situação de rua, mas tem planos de ir para um acampamento de reabilitação cristão. – Você não acha que deveria voltar para a metadona? – sugiro. Sean engole a primeira dose com avidez antes de me contar os detalhes de sua recaída mais recente. – Não sei por quê, doutor. Achei que eu usaria só uma vez, só aquela vez e pronto. – Então você vai mesmo para a reabilitação cristã? – Minha família está insistindo, mas não quero. – Você explicou isso para eles? – Não. – O que o impede de falar a verdade? – Não quero magoar ninguém. Eles já me ajudaram tanto, e eu só fracasso… No mesmo instante sou tomado pela reprovação. Irritado com a carência e a fraqueza dele (isto é, com as minhas), tenho vontade de lhe dar uma lição. – Não acredito em você – rebato. – Não acho que esteja mentindo, mas que não está sendo sincero consigo mesmo. Você não tem medo de magoar sua família: já está magoando. – Estou, sim. Mas não quero ir para esse acampamento, sei o que acontece lá. É um lugar muito difícil, existe todo um cronograma. São muito rigorosos. – A questão não é essa. Estou falando sobre você ser honesto com sua família a respeito do que sente e anda fazendo. Você só não quer encarar uma conversa difícil. Está com medo das críticas das outras pessoas ou das suas próprias. Você é covarde demais para ser sincero. Sean olha para mim com um sorriso envergonhado. – É isso mesmo, doutor. – Bem, então pare. Seja sincero sobre o que você quer ou não quer. Sua família merece isso. O “doutor”, depois de insistir que seu paciente viciado falasse a verdade, voltaria para casa e enganaria a esposa, carregando sua pasta lotada com seu mais recente estoque de compras da Sikora’s.
Vício na internet, nas redes sociais, gera problemas cognitivos.
Em outra ocasião, ele me conta sobre uma aventura que teve quando jovem, numa visita à Alemanha. – Levei uma garota no Geburtszimmer de Beethoven. Recordo-me do alemão rudimentar que aprendi na infância: geboren, nascer; Zimmer, sala. – A sala de parto de Beethoven? – É, o quarto onde ele nasceu. Levei vinho, queijo, um pouco de salame e maconha. Arrombei a fechadura, entrei com a garota, toquei o piano dele e me diverti à beça. – Uau! – exclamei, erguendo as sobrancelhas em ceticismo. – Em que cidade foi isso? – Outro teste. – Bonn. – Sim, Beethoven nasceu em Bonn – murmuro. Ralph, meio maníaco de cocaína, prossegue para uma performance completamente inesperada. – Aqui vai um poema que escrevi e que você pode gostar. Chama-se “Prelúdio”. Sua recitação compassada é feita com uma voz baixa, rouca, num ritmo tão rápido que mal noto intervalos para respirar. O poema é composto por dísticos rimados em pentâmetro. Fala sobre solidão, perda, fatalismo. – Você escreveu isso? – Sim. Escrevi 500 páginas de poemas. Era minha vida. Não sei onde elas foram parar. Passei cinco anos vivendo nas ruas. Deixei meus poemas num hotel onde fiquei por uma semana. Queriam que eu pagasse 100 dólares para pegar minhas coisas de volta, e eu não tinha dinheiro. Talvez tenham vendido tudo num leilão, talvez as coisas tenham ficado com um segurança, talvez tenham jogado no lixo. Sei lá. Só me lembro de algumas partes. Minhas coisas se foram. Perdi tudo. Ralph se torna estranhamente pensativo por um instante. De repente, seu rosto se ilumina. – Você vai reconhecer esta – diz ele, e faz uma declamação rápida, num alemão que rima. Por nunca ter sido fluente no idioma, não entendo nada, mas dou um palpite otimista: – Isso parece mais Goethe do que Goebbels. – E é – confirma Ralph, triunfante. – São os últimos oito versos de Fausto. Sem pestanejar, ele recita em inglês: Tudo que é transitório É parábola apenas, Aqui se completam As insuficiências terrenas. O que não se nomeia Pelo amor vence a vida. O eterno feminino Céu acima convida. Ele recita o poema sem sua habitual intensidade apressada; sua voz soa calma e suave. Em casa naquela noite, tiro da estante Fausto, parte II, e abro na última página. Lá está: o louvor de Goethe à iluminação espiritual, à união abençoada entre o espírito humano e o princípio feminino, o amor divino. Goethe, assim como Dante em A divina comédia, representa o amor divinal como uma qualidade feminina. Acho a tradução de Goethe apresentada por Ralph, seja dele mesmo ou decorada, mais comovente que a versão que tenho em mãos. Conforme leio os belos versos do poeta alemão em minha casa confortável num bairro luxuoso e arborizado de Vancouver, é impossível não pensar que Ralph, naquele exato momento, apoiado em sua bengala, passa a noite fazendo vigília em algum canto sujo da Hastings Street, tentando conseguir sua próxima dose de cocaína. Em seu coração, ele almeja a beleza tanto quanto eu e, tanto quanto eu, necessita de amor. Se o entendi bem, Ralph deseja, acima de tudo, a união com o eterno feminino caritas – o amor divino abençoado, que salva almas. Aqui, divino não se refere a uma divindade sobrenatural acima de nós, mas à essência imortal que existe dentro de nós, através de nós, além de nós. A religião pode associá-la à crença num deus, porém a busca pela eternidade vai muito além de conceitos religiosos formais. Uma consequência da privação espiritual é o vício, e não apenas de drogas. Em conferências de medicina, é cada vez mais comum vermos palestras sobre o aspecto espiritual do vício e de seu tratamento. A forma e a gravidade do vício são moldadas por muitas influências – sociais, político-econômicas, pessoais e familiares, fisiológicas e genéticas –, porém há um vazio espiritual no âmago de todos os vícios. No caso de Serena, a mulher indígena de Kelowna, o vazio foi gerado pela violência insuportável que sofreu na infância – assunto ao qual retornarei adiante. Mas, por enquanto, basta dizer que, se eu já não tivesse notado o desejo secreto de Ralph por Deus em seu recital de Goethe, o próprio Ralph o confirmaria em palavras alguns meses depois. No fundo da alma, ele anseia por se conectar intimamente com a mesma qualidade feminina que sua agressividade belicosa e desenfreada pisoteia com tanta maldade. Pouco depois, talvez na consulta seguinte, já estamos de volta ao Arbeit macht frei, ao Schmutzige Jude, ao Heil Hitler. – Enfia sua morfina no cu! – berra Ralph em sua voz árida. – Quero Ritalina, cocaína, lidocaína! Ele poderia muito bem estar gritando “Liberdade ou morte”. As drogas são a única libertação que conhece. Infecções bacterianas no sangue são complicações frequentes do uso de drogas, especialmente nas precárias condições de higiene de muitos viciados. No ano passado, Ralph foi hospitalizado e precisou tomar antibióticos fortes por via intravenosa por dois meses para curar uma sepse que poderia ter sido fatal. Já quase no fim do tratamento, vou visitá-lo em seu quarto numa das alas médicas do Vancouver Hospital. Lá encontro uma pessoa muito diferente do pseudonazista raivoso e hostil que frequentava meu consultório. Ele está deitado na maca meio inclinada, coberto com um lençol branco até a barriga. O peito magro e os braços estão desnudos. O cabelo grisalho agora exibe um corte uniforme, com uma leve tonsura acima das têmporas raspadas. Ele me cumprimenta com um aceno da mão esquerda. Começamos falando de sua saúde e seus planos após a alta. Espero ajudá-lo a encontrar uma moradia longe das drogas. A princípio, Ralph se mostra hesitante, mas acaba concordando que seria uma boa ideia não voltar para Downtown Eastside. – Fiquei feliz por você ter vindo – diz ele. – Daniel também veio. Tivemos uma conversa legal. Na época, meu filho Daniel trabalhava no departamento de saúde mental do Portland Hotel. Músico e compositor, ele visitou Ralph no hospital e os dois gravaram quase uma hora de músicas de Bob Dylan. A gravação consistia principalmente em Daniel dedilhando o violão e cantando junto com a voz rouca e desinibida de quase barítono de Ralph. Como cantor, Ralph não tem muito domínio das melodias, mas sabe captar a dimensão emocional das letras e canções de Dylan. – Pedi desculpas a Daniel pelo que falei, e peço desculpas a você também, por aquela idiotice de Arbeit macht frei. – Estou curioso. Por que você fala essas coisas? – É só uma questão de supremacia. Não acredito em nada disso. Nenhuma raça é superior. Ou todos os povos são superiores a Deus, ou nenhum é… Mas não faz diferença. São só besteiras que dão na telha dos outros. Cresci sofrendo com o Partido Nacional-Socialista, e você também, apesar de ter enfrentado o outro lado das coisas. Foi uma situação infeliz. Peço desculpas por tudo que falei contra você e seu filho. Quero muito sair logo daqui para tocar mais músicas com Daniel. – Olha, o que mais me preocupa é que essas coisas deixam você isolado. Acho que em algum momento você aprendeu que a melhor maneira de sobreviver no mundo é sendo extremamente hostil. – Deve ser isso mesmo. – Quando Ralph fica emocionalmente agitado, como agora, a pele de seu antebraço ondula como uma bolsa de bolinhas de gude. – Porque as pessoas me trataram mal e aí… aí você aprende a tratá-las mal de volta. É uma explicação… Não a única… – Isso é muito comum – digo. – Eu também sou bastante arrogante às vezes. – Beleza. Eu só queria… Tudo girava em torno das drogas. Eu não queria morfina… Eu queria lidocaína. Isso resolveria meus problemas… Eu não ficaria na fissura por nada, não ficaria atrás de nada. Ela teria amenizado tudo. Ralph embarca numa explicação extremamente complicada sobre como a lidocaína, um anestésico local, é preparado para a inalação numa mistura de bicarbonato de sódio e água destilada. O produto final é inalado por um pedaço de palha de aço. Ele descreve de modo muito específico a técnica da inalação, que, segundo me explica, deve terminar com a substância sendo lentamente expelida pelo nariz. Escuto com fascínio essa palestra extraordinária sobre psicofarmacologia aplicada.
Minha bisavó – que Deus a tenha em glória- sempre contava e recontava em sentidas recordações de outros tempos a estória de saudade daquele prato azul-pombinho.
Era uma estória minuciosa. Comprida, detalhada. Sentimental. Puxada em suspiros saudosistas e ais presentes. E terminava invariavelmente, depois do caso esmiuçado: ” – Nem gosto de lembrar disso…” É que a estória se prendia aos tempos idos em que vivia minha bisavó que fizera deles seu presente e seu futuro.
Voltando ao prato azul- pombinho que conheci quando menina e que deixou em mim lembrança imperecível. Era um prato sozinho, último remanescente, sobrevivente, sobra mesmo, de uma coleção, de um aparelho antigo de 92 peças. Isto contava com emoção, minha bisavó, que Deus haja.
Era um prato original, muito grande, fora de tamanho, um tanto oval. Prato de centro, de antigas mesas senhoriais de família numerosa. De faustos casamentos e dias de batizado.
Pesado. Com duas asas por onde segurar. Prato de bom-bocado e de mães-bentas. De fios de ovos. De receita dobrada de grandes pudins, recendendo a cravo, nadando em calda.
Era, na verdade, um enlevo. Tinha seus desenhos em miniaturas delicada: Todo azul-forte, em fundo claro num meio – relevo. Galhadas de árvores e flores estilizadas. Um templo enfeitado de lanternas. Figuras rotundas de entremez. Uma ilha. Um quiosque rendilhado. Um braço de mar. Um pagode e um palácio chinês. Uma ponte. Um barco com sua coberta de seda. Pombos sobrevoando.
Minha bisavó traduzia com sentimento sem igual, a lenda oriental estampada no fundo daquele prato. Eu era toda ouvidos. Ouvia com os olhos, com o nariz, com a boca, com todos os sentidos, aquela estória da Princesinha Lui, lá da China – muito longe de Goiás – que tinha fugido do palácio, um dia, com um plebeu do seu agrado e se refugiado num quiosque muito lindo com aquele a quem queria, enquanto o velho mandarim – seu pai – concertava, com outro mandarim de nobre casta, detalhes complicados e cerimoniosos de seu casamento com um príncipe todo-poderoso, chamado Li.
Então, o velho mandarim, que aparecia também no prato, de rabicho e de quimono, com gestos de espavento e cercado de aparato, decretou que os criados do palácio incendiassem o quiosque onde se encontravam os fugitivos namorados.
E lá estavam no fundo do prato, – oh, encanto de minha meninice! – pintadinhos de azul, uns atrás dos outros – atravessando a ponte, com seus chapeuzinhos de bateia e suas japoninhas largas, cinco miniaturas de chinês. Cada qual com sua tocha acesa – na pintura- para por fogo no quiosque – da pintura.
Mas ao largo do mar alto balouçava um barco altivo com sua coberta de prata, levando longe o casal fugitivo.
Havia, como já disse, pombos esvoaçando. E um deles levava, numa argolinha do pé, mensagem da boa ama, dando aviso a sua princesa e dama, da vingança do velho mandarim.
Os namorados então na calada da noite, passaram sorrateiros para o barco, driblando o velho, como se diz hoje. E era aquele barco que balouçava no mar alto da velha China, no fundo do prato.
Eu era curiosa para saber o final da estória. Mas o resto, por muito que pedisse, não contava minha bisavó. Dali pra frente a estória era omissa. Dizia ela – que o resto não estava no prato nem constava do relato. Do resto, ela não sabia. E dava o ponto final recomendado. ” -Cuidado com esse prato! É o último de 92″
Devo dizer – esclarecendo, esses 92 não foram do meu tempo. Explicava minha bisavó que os outros – quebrados, sumidos, talvez roubados – traziam outros recados,outras legendas, prebendas de um tal Confúcio e baladas de um vate chamado Hipeng.
Do meu tempo só foi mesmo aquele último que, em raros dias de cerimônia ou festas do Divino figurava na mesa em grande pompa, carregado de doces secos, variados, muito finos, encimados por uma coroa alvacenta e macia de cocadas-de-fita.
às vezes, ia de empréstimo à casa da boa tia Nhorita. E era certo no centro da mesa de aniversário, com sua montanha de empadas, bem tostadas. No dia seguinte, voltava. conduzido por um portador que era sempre o Abdênago, preto de valor, de alta e mútua confiança.
Voltava com muito-obrigados e, melhor – cheinho de doces e salgados. Tornava a relíquia para o relicário que no caso era um grande e velho armário, alto e bem fechado. -“Cuidado com o prato azul-pombinho” dizia minha bisavó, cada vez que o punha de lado.
Um dia, por azar, sem se saber, sem se esperar, artes do salta-caminho, partes do capeta, fora do seu lugar, apareceu quebrado, feito em pedaços – sim senhor- o prato azul-pombinho. Foi um espanto. Um torvelinho. Exclamações. Histeria coletiva. Um deus nos acuda. Um rebuliço. Quem foi, quem não foi?…
O pessoal da casa se assanhava. Cada qual jurava por si. Achava seus bons álibis. Punia pelos outros. Se defendia com energia. Minha bisavó teve “aquela coisa” (Ela sempre tinha “aquela coisa” em casos tais”) Sobreveio o flato. Arrotando alto, por fim, até chorou…
Eu (emocionada), vendo o pranto de minha bisavó, lembrando só da princesinha Lui- que já tinha passado a viver no meu inconsciente como ser presente, comecei a chorar – que chorona sempre fui.
Foi o bastante para ser apontada e acusada de ter quebrado o prato. Chorei mais alto, na maior tristeza, comprometendo qualquer tentativa de defesa. De nada valeu minha fraca negativa. Fez-se o levantamento de minha vida pregressa de menina e a revisão de uns tantos processos arquivados. Tinha já quebrado – em tempos alternados, três pratos, uma compoteira de estimação, uma tigela, vários pires e a tampa de uma terrina.
Meus antecedente, até, não eram muito bons. Com relação a coisas quebradas nada me abonava. E o processo se fez, à revelia da ré, e com esta agravante: tinha colado no meu ser magricela, de menina, vários vocativos adesivos, pejorativos: inzoneira, buliçosa e malina.
Por indução e conclusiva, era eu mesma que tinha quebrado o prato azul-pombinho.
Reuniu-se o conselho de família e veio a condenação à moda do meu tempo: uma boa tunda de chineladas.
Aí ponderou minha bisavó umas tantas atenuantes a meu favor. E o castigo foi comutado para outro, bem lembrado, que melhor servisse a todos de escarmento e de lição: trazer no pescoço por tempo indeterminado, amarrado de um cordão, um caco do prato quebrado.
O dito, melhor feito. Logo se torceu no fuso um cordão de novelão. Encerdo foi.Amarrou-se a ele um caco, de bom jeito, em forma de meia-lua. E a modo de colar, foi posto em seu lugar, isto é, no meu pescoço. Ainda mais agravada a penalidade: proibição de chegar na porta da rua.. Era assim, antigamente.
Dizia-se aquele, um castigo atinente, de ótima procedência.Boa coerência. Exemplar e de alta moral.
Chorei sozinha minhas mágoas de criança. Depois, me acostumei com aquilo. no fim, até brincava com o caco pendurado E foi assim que guardei no armarinho da memória, bem guardado, e posso contar aos meus leitores, direitinho, a estória, tão singela, do prato azul- pombinho.
Daniel Kahneman, psicólogo laureado com o Prêmio Nobel de Economia, apresenta em Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar uma análise fascinante sobre como tomamos decisões e como o funcionamento do cérebro humano pode nos levar a erros e acertos. O livro, publicado em 2011, é uma obra essencial para quem deseja compreender melhor os mecanismos por trás de nossas escolhas e comportamentos.
“Al final del Camino solo recuerdas una batalla, lá que libraste contigo mismo, ele verdadero enemigo; la que te hizo único.” Presente de Natal de minha maninha Cy, obrigada iluminada!