São Paulo, 9 de fevereiro de 2006.
Manir de Godoy
Recebi entre lágrimas a notícia do seu falecimento e entre lágrimas me ocorreu apenas dizer:
_ Era muito grande a expectativa do Manir, por essa viagem que ele está agora iniciando.
Sofreu muito esperando. E finalmente quando consultado por médicos, concordou em dormir. Para ele seria apenas dormir.
Para dividir comigo um fato que o consolava, ele me contou a história da barbearia do Chico Xavier.
Alguém que admirava o homem que tinha intimidade com a eternidade, descobriu onde estava o barbeiro que o servia e quando ele estaria lá. A cabeleira do Chico Xavier era uma peruca e havia um barbeiro que não cortava os cabelos que ele não tinha, mas tratava sua calva que tinha um problema dermatológico. Naquela data e hora essa pessoa que queria vê-lo adentrou a barbearia e sentado como se fosse usar os serviços dos profissionais da barba e do cabelo, ficou esperando. Em alguns minutos Chico Xavier chegou gozando dos olhares daqueles para quem ele era uma figura sagrada, e cumprimentando a todos como se os abençoasse. Sua figura era também algo bizarra, por sua peruca e seus lábios continuamente úmidos. Sentou-se na cadeira de seu barbeiro que retirou sua peruca e começou a aplicar-lhe um óleo perfumado, como se fosse mirra aplicada a um homem santo.
Criando coragem, quem esperava levantou-se e quase curvado pela reverência exagerada, pediu licença para aproximar-se dizendo:
_ Sr. Chico o senhor me dá licença de roubar-lhe um minuto? Queria apenas fazer uma pergunta.
Iniciando o diálogo que consistiria de apenas uma pergunta e uma curta resposta, disse:
_ O sr. acha mesmo que há uma vida após a morte?
Chico Xavier virando para ele a cabeça que era tratada, olhou nos olhos o seu interrogador e sorrindo disse:
_ Não meu filho, não existe outra vida após a morte: é a mesma.
Talvez a resposta sucinta, respondendo a tantos mistérios, exaustivamente examinados por Manir, o tenha comovido e movido muito. Ele me contou essa histórinha comovido como se Newton tivesse reinventado uma teoria da luz.
Menino da Rua Virgílio do Nascimento no Brás, morava com sua mãe em uma casa muito pequena nos fundos de outra casa. E havia lá um violino e uma admiração muito grande pelo concerto de Beethoven para aquele instrumento. Juntamo-nos, os amigos, como peregrinos do bairro, da noite, da devoção pelas artes e pela cultura. Sobretudo pelo Teatro.O bairro do Pari tem ainda hoje uma grande igreja, no largo que chamávamos de larguinho. Esta igreja da ordem franciscana com uma arquitetura românica, possuidora de um órgão com grandes pulmões, coroava nosso desejo de um templo para a amizade e para nossas sagradas devoções humanísticas.
Manir supria a doçura, o respeito por nós que tínhamos mais do que ele apenas uma formação mais burguesa e informada. Mas competia conosco com sua finíssima sensibilidade. E era firme quando nos censurava um ponto de vista frouxo, desatento, rude.
Era um operário gráfico e como todo gráfico, aos pés do linotipo, era informado e politizado. Admirador da esquerda que então ainda era heróica. Inocentes e ingênuos, sem as facilidades tecnológicas atuais – nem mesmo um gravadorzinho de pilha – nos satisfazíamos assobiando o Concerto para a Noite de Natal, de Corelli. Só parávamos de assobiar quando alguém
introduzia com os lábios um Albinoni. Sob a lua e a igreja. Contei ao Manir, há alguns anos atrás, que fiquei muito impressionado com o disco voador que havíamos visto na várzea de Vila Guilherme. Manir sorriu e me informou que eu não tinha visto o disco voador. Eu insistí que estava lá com ele e o Rudy. E ele me disse que eu estava enganado porque eu só sabia do fato porque eles me haviam descrito a experiência.
Tal era o partilhar de nossas emoções e a divisão que fazíamos entre nós dos acontecimentos maravilhosos. A experiência de um de nós era patrimônio de todos.
E há o capítulo da Discoteca Municipal. Cabines para dois nas quais nos trancávamos para ouvir música. Manir e os duos sonatas para violino e piano de Beethoven. “A Primavera” era uma peça essencial para Manir. Eu repetia infinitamente a audição só para mim de “Dido e Enéias” de Purcell. A discoteca era um refrigério, era para a nossa fantasia, fazer arte. Maynardi ocupava a cabine sózinho para ouvir o Carnaval opus 9 de Schumann e saia comovido sem cumprimentar ninguém, em linha reta e rápida para a porta. Schumann ia com ele. Um dia convidei Violeta Abramo, violinista amadora para ouvirmos o meu Purcell. E ela me perguntou se isso não seria perder tempo e se não seria melhor ouvirmos logo Bach? Éramos os anjos do último andar do Teatro Municipal. Tão alto que se a orquestra tocasse dentro do palco não a veríamos por inteiro. Então apenas ouvíamos, ou descíamos varando portas fechadas, invadindo os andares inferiores. Vimos naquele teatro passar a cultura do século: os pianistas Rubinstein, Kempf, Badura-Skoda, Paderewsky, Brailowsky, e muitos mais; os balés de Monte Carlo, o Sadlers-Well, Jean Babille e Natalie Filipard, Serge Lifar no Espectro da Rosa, o teatro de Paul Claudel e Kafka com Jean Louis Barrault e Madeleine Renault, os balés americanos, os balés étnicos da Polonia, da Rússia, da Romênia. E, naturalmente Vitório Gassman com Seis Personagens à procura de um Autor de Pirandello, La Vedova Scaltra de Goldoni e Orestes de Alfieri. E assistimos o repertório operístico do mundo todo – alemão, francês e italiano.
Assistimos a chegada de Gianni Ratto – que nos deixou dois dias antes de Manir nos deixar – na revista Carrosello Napolitano e Maurice Vanneau no espetáculo Barrabás.
E não pagávamos por isso tudo. Servíamos – em tese – como comparsas nas temporadas líricas – graças a um agente do teatro que se chamava Aielo. Manir e eu vestidos de guardas medievais, entramos para arrancar de cena o Vitório Gassman em Orestes de Alfieri e éramos comparsas da Madame Buterfly, sendo eu o cozinheiro chinês.
Lá em cima na galeria haviam os jovens judeus que devoravam conosco o banquete da cultura. Um dia eles desapareceram quase totalmente. Haviam se decidido por um kibutz de Israel e partiram para uma viagem cujo final desconhecemos.
Na volta do Teatro Municipal, tínhamos que andar da Praça Ramos de Azevedo
até o Brás. E falávamos, criticávamos, idealizávamos, sintetizávamos, nos ilustrávamos e começávamos a nos separar no Largo da Concórdia e eu descia muitas vezes com Manir até a rua Bresser que era nossa geografia, acompanhados por Maurício Tragtenberg que corajosamente continuava a marchar até o Belém. No dia seguinte, tudo de novo, numa liturgia do conhecimento anárquico e sem método: pois não haveria faculdade que contivesse nossa capacidade para aprender. Conhecimento foi para nós a sede diária.
Manir estava impedido durante o dia porque trabalhava na Saraiva da Rua Sampson com os tipos gráficos de chumbo. Mas lia, lia muito. E sonhava música para violino. Logo mais, à noite, seria no larguinho.
Rudy morreu, Hélio foi preso durante a revolução e ensinou filosofia, Maneco fazia televisão e eu tomei um navio para a Grécia.
Nestes últimos meses estive por telefone com Manir que não queria revelar a visão do flagelo que tomara seu corpo. Me pediu que não fosse vê-lo. Apenas falávamos sobre valores aos quais dávamos crédito e seu ritornelo era a espera do imprevisível, do inominável, do destino, de uma vida que afinal seria apenas a mesma.
Deixou em nós uma memória do amor fraterno e viril. E há um segredo sobre o Manir. Ele gozou da maravilhosa dádiva que o carregou por toda a vida: ele foi o filho muito amado de sua mãe. Este milagre é gozado por alguns e serve a eles de estrutura existencial e confiança no bem e no belo.
Sua ausência já se apressou em levar consigo um pedaço dos seus amigos.
Todos nós vimos com clareza o disco voador, mesmo que poucos estivessem lá.
Dividimos tão inteiramente tudo e agora um pedaço se apaga.
Ficamos aqui nesta inexplicável e transitória peregrinação imaginando se essa viagem do Manir coincide com a definição de Chico Xavier: é a mesma.
Cyro del Nero