Médico, cura a ti mesmo*

* Excertos do livro “Vício: o reino dos fantasmas famintos”

Estou a caminho do St. Paul’s Hospital. Também trabalho lá, na ala psiquiátrica. Sigo a rota habitual: saio da garagem do Portland, viro à esquerda na viela para a Abbott, entro à direita para a Pender. Dois quarteirões depois da Abbott, meu coração acelera quando me aproximo da Sikora’s – sem dúvida uma das melhores lojas de música clássica do mundo. Pensamentos sobre um CD de ópera do tenor Rolando Villazón agitam minha mente e meu corpo. Escutei algumas faixas ontem, quando fui à loja para pagar minha última fatura, mas resisti à ânsia de comprar o disco. Hoje, ele clama que eu volte e o leve para casa. Preciso dele, e preciso agora. O desejo surge primeiro como um pensamento e logo se transforma num objeto concreto na minha mente, com peso e atração. Gera um campo gravitacional irresistível. A tensão só é aliviada quando cedo. Uma hora depois, saio da Sikora’s com o disco de Villazón e vários outros. Olá, meu nome é Gabor e sou um comprador compulsivo de música clássica. Pausa para esclarecimento: não equiparo minha obsessão por música aos hábitos potencialmente letais dos meus pacientes do Portland. Longe disso. Meu vício é fichinha perto do deles. Também tive muito mais liberdade para tomar decisões na minha vida, e ainda tenho. Porém, se as diferenças entre meu comportamento e a autossabotagem dos meus pacientes são óbvias, as semelhanças são reveladoras – e uma lição de humildade. Com o tempo, comecei a encarar o vício não como uma entidade definida e concreta – um caso de “ou você tem, ou não tem” –, mas como um grande e sutil espectro. Suas principais características estão presentes em todos os adictos, desde o workaholic aplaudido pela sociedade até o viciado em crack pobre e criminalizado que assombra a periferia. Em algum ponto desse espectro estou eu. Nos últimos dois meses, fui à Sikora’s várias vezes por semana – sem mencionar as breves incursões à Magic Flute, na Fourth Avenue, e os pulinhos na Sam the Record Man e na HMV, em Toronto, durante uma viagem a trabalho. Também fui à Tower Records, em Nova York, antes que a loja fechasse as portas de vez. No momento, meados de fevereiro, já gastei 2 mil dólares em CDs de clássicos desde a virada do ano.

Vício em comida ultraprocessada

Quebrei minha promessa de parar de comprar compulsivamente, feita com o máximo de arrependimento para minha esposa, Rae, após ter gastado mil dólares antes e depois do Natal. Todo santo dia fico obcecado com os discos que desejo comprar e passo horas imerso em textos sobre música clássica na internet – tempo que poderia ser dedicado à minha família ou a escrever este livro, cujo prazo de entrega rapidamente se aproxima. Só que sou seduzido sempre que um crítico diz “todo verdadeiro amante de música sinfônica/coral/piano precisa dessa coletânea”. De repente, não consigo mais imaginar minha vida sem aquele concerto sinfônico de Dvořák, sem aquela versão da Missa em Si Menor de Bach, sem aquela interpretação das Sinfonias de Paris de Haydn em instrumentos de época. Não consigo suportar mais nem um momento sem os Prelúdios de Rachmaninov, sem Le Nozze di Figaro, sem as Bachianas Brasileiras ou sem a última coleção da música de câmara de Shostakovich. É imprescindível ter mais um box de 14 CDs – o quinto que compro – de O anel do Nibelungo, de Wagner, e novas versões de violino ou violoncelo solo de Bach. Hoje, enquanto escrevo isto, preciso comprar L’Arte del Violino de Locatelli, Garden of Spaces de Rautavaara, as Variações Diabelli, a mais recente interpretação das Variações Goldberg em espineta de Pierre Hantaï, os concertos completos de violino de Schnittke, ou de Henze, ou de Mozart… Leio, escrevo, como e até durmo com música nos ouvidos. Não consigo passear com o cachorro sem uma sonata, uma sinfonia, uma ária tocando em meus fones. Meus pensamentos, sentimentos e debates internos sobre música clássica são o que me acorda pela manhã e embala meu sono à noite. Beethoven compôs 32 sonatas para piano. Tenho cinco gravações completas delas – e já me desfiz de 10, algumas tendo sido recompradas e doadas mais de uma vez. Armazenadas em algum lugar do nosso sótão estão duas coleções que nunca mais escutarei. Tenho cinco versões completas dos 16 quartetos de corda de Beethoven e seis coleções das nove sinfonias. Cheguei a ter quase todos os concertos sinfônicos de Beethoven gravados e lançados em CD, incluindo três que não me agradaram e foram parar no sótão. Se neste exato momento eu pusesse para tocar todos os discos com composições de Beethoven que coleciono em minhas prateleiras – e não fizesse mais nada –, levaria semanas para escutar tudo. E estou falando apenas de Beethoven. Muitos dos CDs nas minhas prateleiras fizeram apenas visitas breves ao meu aparelho de som, se é que os escutei. Outros nunca foram abertos, esperando feito órfãos na estante. Rae fica desconfiada. “Você anda obcecado com essas compras?”, me perguntou ela várias vezes nas últimas semanas. Olho nos olhos dessa que é minha companheira de vida há 39 anos e minto. Digo a mim mesmo que não quero deixá-la preocupada, mas não é nada disso. Tenho medo de perder seu afeto. Não quero que ela pense mal de mim. Temo sua raiva. É isso que tento evitar. Já dei sinais; quase como se quisesse ser pego. – Você parece estressado – comentou ela certa noite, no início de janeiro. – Pois é, são todos esses CDs – respondi. Ela me fitou e fui tomado na mesma hora pela vergonha. – Quer dizer, são todos esses CVs que preciso mandar por e-mail – menti. A culpa devia estar estampada na minha testa. Nem sei como consegui disfarçar. Por um instante cogitei confessar tudo, como sempre acabo fazendo. Na semana seguinte, no café da manhã, ergo os olhos do jornal. – Ah – comento com Rae –, a Ópera de Vancouver vai apresentar Don Giovanni em março. – Don Giovanni… – reflete Rae. – Não conheço essa. É sobre o quê? – É a história de Don Juan, o mulherengo compulsivo. Ele é um homem criativo, charmoso, cheio de energia. Um aventureiro ousado, mas moralmente covarde, que nunca encontra paz interior. Sua paixão erótica é insaciável: não importa quanto seja consumada, ele permanece inquieto e insatisfeito. E seu talento poético e seu ímpeto dominador só aumentam sua necessidade incansável de possuir. Ele está sempre em busca da próxima aquisição, até lista todas as suas conquistas amorosas num caderno. Ele encontra muitas, muitas oportunidades de salvação, mas ignora todas. Atormenta os outros e sacrifica a própria alma. Zomba do arrependimento e, no fim, é arrastado para o inferno. Rae me encara com um olhar de surpresa – ou seria de cumplicidade? – Que descrição eloquente – diz ela. – Você deu vida ao personagem. Dá para perceber quanto gosta da história. É verdade, gosto – comprei quatro versões dessa obra-prima de Mozart no mês passado para se juntarem às duas que eu já tinha. Nunca escutei nenhuma do começo ao fim. E estou mentindo, escondendo isso tudo de Rae. Na verdade, sou um Don Giovanni em escala menor, menos charmoso: traio com óperas, não com mulheres. Algumas pessoas talvez achem difícil entender como o desejo de ter seis versões de Don Giovanni pode ser chamado de vício. Qual é o problema de amar música, de ter paixão por uma grande arte, por uma experiência sublime? Nós, humanos, precisamos de arte e beleza em nossa vida. Na verdade, é isso que nos torna humanos. O que nos diferencia de nossos finados primos neandertais é nossa capacidade de nos expressar simbolicamente, de representar experiências em termos abstratos. Essa parte do córtex pré-frontal não se desenvolveu no cérebro neandertal. Se tivesse sobrevivido mais um milhão de anos, a espécie não poderia ter gerado um Mozart. Então, no fim das contas, não é humano desejar beleza? Ou até ansiar por ela? E eu adoro música. É a forma mais imediata e abstrata de arte, capaz de se comunicar sem palavras ou imagens visuais. Para mim, pelo menos, é a forma mais pura de expressão artística. Com ou sem palavras, as canções falam com eloquência sobre perda e alegria, dúvida e certeza, desespero e inspiração, desejo carnal e divindade transcendente. A música me desafia, me empolga, me preenche, me emociona, amolece meu coração. Desperta dentro de mim emoções há muito adormecidas em outros aspectos da vida.

Como Thomas De Quincey escreve em Confissões de um comedor de ópio, a música tem o poder de fazer com que as paixões da vida sejam “exaltadas, espiritualizadas, sublimadas” – mesmo que De Quincey achasse que precisava usar ópio para apreciar isso tudo. Então, sim, sou apaixonado por música – mas também sou viciado, algo que faz parte de um conjunto ontológico completamente diferente. Vícios, mesmo que pareçam vontades humanas normais, giram mais em torno de desejo do que de conquista. No modo viciado, a carga emocional está na busca e na aquisição do objeto desejado, não na posse e na alegria que ele traz. O maior prazer é encontrado na satisfação momentânea da ânsia. O vício básico diz respeito à experiência transitória de não ter vício. O adicto anseia pela ausência do estado de ânsia. Por um breve momento ele é libertado do vazio, do tédio, da falta de sentido, do desejo, da compulsão, do sofrimento. Ele fica livre. Sua escravidão ao mundo exterior – à substância, ao objeto ou à atividade – consiste na impossibilidade, na cabeça dele, de encontrar dentro de si a liberdade para a ânsia ou a irritação. “Não quero nada e não temo nada”, disse Zorba, o Grego. “Sou livre.” Não há muitos Zorbas entre nós. No meu modo viciado, a música ainda empolga, mas é incapaz de me libertar da necessidade de comprar e adquirir mais e mais. Seu fruto não é alegria, mas insatisfação. A cada CD me iludo dizendo que minha coleção agora está completa. Se eu puder ter só aquele – só mais um –, poderei descansar, satisfeito. É assim que funciona a ilusão. “‘Só mais um’ é o conector no círculo de sofrimento”, escreve o monge budista e professor Sakyong Mipham.1 Meu momento mais puro de liberdade acontece depois que estaciono o carro, sigo correndo para a Sikora’s, diminuo um pouco o passo antes de entrar e respiro fundo enquanto abro a porta. Nesse milésimo de segundo, a vida tem um milhão de possibilidades. “Só é possível perceber o infinito na música quando se busca essa qualidade em si mesmo”, escreve o pianista e maestro Daniel Barenboim.2 Com certeza. Mas esse não é o tipo de infinito que o viciado busca. No fim das contas, o que eu desejo é a adrenalina, junto com as preciosas substâncias químicas recompensadoras que inundarão meu cérebro quando eu segurar o novo CD, sentindo o alívio extremamente temporário da minha compulsão. Mas assim que saio da loja a adrenalina volta a circular pelo meu corpo e minha mente se concentra na próxima compra. Qualquer um que seja viciado em qualquer tipo de busca – sexo, compras, jogos de azar – está atrás da mesma dose de substâncias químicas interiores. Esse comportamento ocorre há décadas, desde que meus filhos eram… Espera. “Esse comportamento ocorre”? Que jeito elegante de me afastar da situação, como se minha atitude fosse um ser independente. Não, eu faço isso há décadas, desde que meus filhos eram pequenos. Passei muitos anos investindo milhares de dólares em CDs. Às vezes gastava centenas de dólares em uma ou duas horas. Meu recorde foi gastar quase 8 mil dólares em uma semana. Só escapei da ruína financeira por ser um médico dedicado (leia-se workaholic) e muito admirado pelo mundo. Como já escrevi em algum momento, para mim era fácil justificar os gastos como uma recompensa pelo trabalho duro que eu fazia: um vício oferecendo álibi para outro.* * Este parágrafo e vários outros neste capítulo foram adaptados de Scattered Minds [Mentes dispersas], livro que escrevi sobre TDAH (Vintage Canada, 2000). A parte confusa é a seguinte: ambas as dependências comportamentais representavam características verdadeiras minhas, cada uma distorcida até sair de proporção. Meu vício em músicas e livros podia ser disfarçado como uma paixão por arte, e meu vício em trabalho, como um serviço à humanidade – e de fato sou apaixonado por arte e desejo servir à humanidade. Não sou o único sujeito no mundo encantado por música clássica e estou longe de ser o único que possui várias gravações de obras-primas. Então todos esses outros entusiastas também são adictos? Não, nem todos, mas muitos são – eu os encontro nas lojas e leio seus comentários na internet. Adictos se reconhecem. Qualquer paixão pode se tornar um vício; mas então como distinguir as duas coisas? A pergunta principal é: quem está no comando, o indivíduo ou seu comportamento? É possível dominar uma paixão, porém uma paixão obsessiva e incontrolável é um vício. E o vício é o comportamento que uma pessoa continua tendo com frequência, apesar de saber que está prejudicando a si mesma e/ou aos outros. A maneira como se expressa externamente é irrelevante. A questão é o relacionamento interior de uma pessoa com a paixão e seus comportamentos. Se estiver na dúvida, faça a si mesmo uma simples pergunta: “Considerando os danos que estou causando a mim e aos outros, estou disposto a parar?” Caso a resposta seja não, você é um viciado. Se não consegue renunciar ao comportamento nem manter sua palavra quando tenta fazer isso, você tem um vício. Existe, é claro, uma camada mais profunda, mais sólida, por baixo de todo tipo de vício: um estado de negação no qual, contra qualquer lógica e evidência, a pessoa se recusa a reconhecer que está fazendo mal a si mesmo ou a outra pessoa. No estado de negação, a pessoa resiste por completo a qualquer tipo de questionamento. Mas, se quiser mesmo saber a resposta, olhe ao seu redor. Depois de concretizar sua paixão, você se torna mais próximo das pessoas que ama ou mais isolado? Você se sente mais autêntico ou mais vazio? A diferença entre paixão e vício é aquela entre uma faísca divina e uma chama que queima. O fogo sagrado pelo qual Moshe (Moisés) sentiu a presença de Deus no monte Horebe não queimou o arbusto de onde saía: E o mensageiro de YHWH foi visto por ele na chama de um fogo em meio a um arbusto. Ele viu: aqui, o arbusto arde em chamas, e o arbusto não é consumido!3 A paixão é o fogo divino: ela dá vida e torna sagrado; ela oferece luz e gera inspiração. A paixão é generosa porque não é motivada pelo ego; já o vício é egoísta. A paixão dá e enriquece; o vício rouba. A paixão é uma fonte de iluminação e verdade; os comportamentos do vício nos arrastam para a escuridão. Você se torna mais vivo quando está apaixonado e encontra o triunfo mesmo que não alcance seu objetivo. Mas um vício exige um resultado específico que alimente o ego; sem esse resultado, o ego se sente vazio e desprovido. Uma paixão avassaladora e irresistível, independentemente das consequências, é um vício. Talvez você até dedique sua vida inteira a uma paixão, mas o fará com liberdade e alegria, seguindo completamente seus valores e sua verdade. No vício, não há alegria, liberdade nem virtude. O viciado espreita, envergonhado, os cantos sombrios de sua própria existência. Vejo a vergonha no olhar dos meus pacientes viciados e, em sua vergonha, vejo um reflexo da minha. O vício é a imagem sombria da paixão e, para um observador ingênuo, sua imitação perfeita. Ele remete à paixão em sua urgência, em sua promessa de satisfação, mas seus presentes são ilusórios. É um buraco negro. Quanto mais você oferece ao vício, mais ele exige. Ao contrário da paixão, sua alquimia não cria novos elementos, apenas degrada tudo aquilo em que toca e o transforma em algo inferior, mais barato. Será que fico mais feliz depois de ceder às minhas compulsões autoindulgentes? Como um Scrooge furtivo, repasso e catalogo mentalmente minhas últimas compras, curvado e esfregando as mãos num gesto de alegria consumista, o coração tornando-se ainda mais frio. Após um surto de compras, não sou um homem satisfeito. O vício é centrífugo. Suga nossa energia, criando um vácuo de inércia. Uma paixão nos energiza e enriquece nossos relacionamentos. Ela nos empodera e dá força aos outros. A paixão cria; o vício consome – primeiro o hospedeiro, depois os outros dentro de sua órbita. O famoso musical A pequena loja dos horrores é uma metáfora brilhante sobre o vício. Seymour, um sujeito comum que trabalha como vendedor numa floricultura (interpretado por Rick Moranis no filme de 1986), fica com pena de uma plantinha “estranha e diferente” que está morrendo de desnutrição. Ela atrai uma nova clientela muito necessária para a loja, mas há um problema. Ninguém consegue entender do que se alimenta essa planta (batizada de Audrey II, em homenagem à amada de Seymour), até a noite em que ele acidentalmente fura um dedo e a planta engole com avidez as gotas de sangue que pingam da ferida. Saciada por um breve momento, a planta quer mais, e Seymour obedientemente oferece outra dose de seu precioso plasma. A planta então adquire voz e personalidade próprias. Implora e lisonjeia, prometendo que será escrava de Seymour. E dá uma ordem abrupta: “Me alimente, Seymour!” Apavorado, o homem obedece. A planta cresce e se torna cada vez mais faminta, enquanto Seymour enfraquece e fica anêmico – no sentido físico e moral. Quando parece que a fonte de Seymour vai secar (literalmente), ele tem a ideia de alimentar a planta com cadáveres humanos e encontra uma nova vocação: matar pessoas. No final, Seymour é obrigado a travar uma batalha heroica contra a sanguinária Audrey II. Empenhada em conquistar e dominar, a planta não se dá nem mais ao trabalho de fingir uma amizade. O mesmo acontece com o vício. Começando apenas com as poucas gotas de sangue que você está disposto a doar no começo, ele logo consome o suficiente para dominar e controlar você. Então passa a atacar as pessoas ao seu redor, e é preciso lutar para derrotá-lo. Eu me perco quando estou preso numa das minhas espirais de vício. Aos poucos minha força moral se esvai e me sinto vazio. Meus olhos exibem apenas o vácuo. Tenho medo de que até meus amigos na Sikora’s, aqueles que me vendem o que desejo, enxerguem o que há por trás da minha máscara frágil. Não há nada por trás da fachada além de um organismo que pulsa por gratificação. Não sou um amante de música diante do balcão, mas um fracote desprezível. Sinto a pena que sentem de mim. A todo lugar que vou, sinto que interpreto um personagem. Os enfermeiros no St. Paul’s me perguntam como estou. “Bem”, respondo. “Estou bem.” O que nunca digo é: “Estou obcecado. Acabei de sair da loja de discos e mal posso esperar o fim do expediente para voltar correndo ao meu carro e escutar tal ópera ou sinfonia. Então, a menos que eu vá comprar mais coisas na loja, irei para casa e mentirei para minha esposa. E estou me sentindo muito culpado. É assim que estou.” Comentários autodepreciativos, pessimistas ou negativos se infiltram em minhas conversas. Alguém na ala elogia meu trabalho e reajo a isso com uma piada: “Ah, de vez em quando consigo fingir competência.” Mas não é uma piada. A pessoa me lança um olhar estranho e diz que está falando sério. É claro que está, mas, em meio à minha vergonha, não acho que mereço ser elogiado. Rebater elogios faz parte de ter um vício secreto. Vou me tornando cada vez mais cético em relação ao mundo – sobre a política, as pessoas, as possibilidades, o futuro. Toda manhã resmungo para o jornal, insatisfeito com o que ele informa ou deixa de informar. O The Globe and Mail, com suas notícias, editoriais e colunas de opinião, favorece corporações, partidos e políticos neoconservadores pelo mundo. Só que o bom e velho Globe só está seguindo suas origens capitalistas, de sangue azul. Continua sendo o melhor jornal do Canadá e a decisão de continuar pagando a assinatura é minha. Então por que me enfureço com ele enquanto tomo café? Minha negatividade vem da minha insatisfação interior, das minhas autocríticas severas. O Globe não expressa aquilo em que acredito? Nem eu. O Globe justifica a ganância egoísta e exime a desonestidade? Olha só quem está falando. Quem dera se a negatividade se resumisse ao meu relacionamento conturbado com a mídia impressa. Não, eu vou me tornando cada vez mais crítico, irritado e moralista com minha filha adolescente. Quanto mais cedo aos meus impulsos, mais a julgo. Não posso ser otimista e acreditar no desenvolvimento dela quando sei que estou sabotando o meu. Como posso enxergar o melhor nela quando não consigo ver nada além do pior em mim mesmo? Nossas interações são tensas. Com 17 anos, ela já tem um vasto repertório de palavras e gestos para comunicar seu descontentamento. Minha relação com Rae vai perdendo a vitalidade. Como meu mundo interior é dominado pela obsessão, tenho pouco a dizer, e o que digo soa falso até aos meus ouvidos. Já que estou focado em mim mesmo, a atenção que dedico a ela acaba se tornando uma obrigação. Quando entro num dos meus ciclos de vício, é quase como se eu estivesse tendo um caso extraconjugal, repleto de obsessões, mentiras e manipulações. Acima de tudo, eu me torno ausente. É impossível estar presente por inteiro quando crio barreiras para me esconder. A intimidade e a espontaneidade são sacrificadas. Algo precisa ficar de lado, e fica – às vezes por dias, semanas e meses. Quando meus filhos eram muito mais novos, eu os deixava esperando ou os apressava de acordo com meus objetivos. Se pudesse, eu apagaria da memória a ocasião em que deixei meu filho de 11 anos numa loja de revista em quadrinhos após uma partida de futebol, com um de seus colegas de time. “Volto em 15 minutos”, falei. Demorei quase uma hora para voltar. Não dei só um pulinho na loja do outro lado da rua; também dirigi até outra, no centro da cidade, em minha busca pelo que, na hora, era o disco que eu precisava ter. Quando finalmente me viu de volta na porta da loja, o rosto do meu filho estava tomado por ansiedade e espanto. Menti diariamente para minha esposa por semanas e meses. Eu entrava correndo em casa, escondendo minhas últimas compras na varanda, fingindo estar presente e calmo. Mas, por dentro, eu só conseguia pensar em música. Quando me pegavam no flagra, como sempre acontecia, eu fazia confissões arrependidas e promessas que logo seriam quebradas. Eu me odiava, e o asco que sentia por mim mesmo se manifestava na maneira ríspida, controladora e crítica com que lidava com meus filhos.

Vício em trabalho é socialmente aceito

Quando estamos preocupados em suprir nossas necessidades falsas, não suportamos ver as necessidades reais de outras pessoas – muito menos de nossos filhos. Talvez o fundo do poço (mas com certeza não o fim) dos meus anos de vício tenha sido quando abandonei uma mulher em trabalho de parto para ir rapidinho até a Sikora’s no trânsito do meio-dia. Eu até teria conseguido voltar ao hospital a tempo para o parto se não tivesse começado a procurar outros discos. Murmurei um pedido de desculpas quando retornei, mas não dei qualquer explicação. Todos foram muito compreensivos, até a paciente decepcionada. Afinal de contas, o Dr. Maté é um homem ocupado. Ele não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Em Vancouver, eu tinha a reputação de ser um médico que se dedicava muito às pacientes grávidas e lhes oferecia todo o apoio do mundo durante o parto. Não dessa vez. Aquela bebê nasceu sem mim. (Seu nome é Carmela. Ela é uma linda universitária e dançarina de 20 anos. Contei a história toda para sua mãe, Joyce, muitos anos atrás.) Essa não é a primeira “confissão” pública que faço. Já escrevi e falei sobre meus vícios antes. E a verdade é que, enquanto escrevo isto, nem a admissão pública sobre meu comportamento nem a compreensão total do seu impacto sobre mim e minha família me impedem de repetir o ciclo. Escrevi três livros e recebo cartas e e-mails de leitores do mundo todo, me agradecendo por tê-los ajudado a transformar a própria vida. Ainda assim, continuo adotando padrões de comportamento que me pesam a alma, afastam meus entes queridos e sugam minha vitalidade.* * Desde que escrevi este capítulo, em fevereiro de 2006, mudei consideravelmente minha relação com meus hábitos compulsivos. Falarei mais disso adiante. Em janeiro de 2006, enquanto enfrento uma persistente obsessão por CDs, Sean entra choramingando no meu consultório. – Fiz besteira – diz ele. – Estou vomitando e com diarreia. Usei heroína… Ai, cara… Sean tinha passado meses numa casa de reabilitação. Eu não o via fazia muito tempo, mas ele telefonava com regularidade, relatando com orgulho seu progresso e a determinação de continuar limpo. Certa vez, deixou um recado na minha caixa postal: “Estou ligando para agradecer por toda a sua ajuda. Eu só queria dizer obrigado, cara.” Agora ele está de volta a Downtown Eastside, pálido, desarrumado, fraco, sujo. Faz semanas que está em situação de rua, mas tem planos de ir para um acampamento de reabilitação cristão. – Você não acha que deveria voltar para a metadona? – sugiro. Sean engole a primeira dose com avidez antes de me contar os detalhes de sua recaída mais recente. – Não sei por quê, doutor. Achei que eu usaria só uma vez, só aquela vez e pronto. – Então você vai mesmo para a reabilitação cristã? – Minha família está insistindo, mas não quero. – Você explicou isso para eles? – Não. – O que o impede de falar a verdade? – Não quero magoar ninguém. Eles já me ajudaram tanto, e eu só fracasso… No mesmo instante sou tomado pela reprovação. Irritado com a carência e a fraqueza dele (isto é, com as minhas), tenho vontade de lhe dar uma lição. – Não acredito em você – rebato. – Não acho que esteja mentindo, mas que não está sendo sincero consigo mesmo. Você não tem medo de magoar sua família: já está magoando. – Estou, sim. Mas não quero ir para esse acampamento, sei o que acontece lá. É um lugar muito difícil, existe todo um cronograma. São muito rigorosos. – A questão não é essa. Estou falando sobre você ser honesto com sua família a respeito do que sente e anda fazendo. Você só não quer encarar uma conversa difícil. Está com medo das críticas das outras pessoas ou das suas próprias. Você é covarde demais para ser sincero. Sean olha para mim com um sorriso envergonhado. – É isso mesmo, doutor. – Bem, então pare. Seja sincero sobre o que você quer ou não quer. Sua família merece isso. O “doutor”, depois de insistir que seu paciente viciado falasse a verdade, voltaria para casa e enganaria a esposa, carregando sua pasta lotada com seu mais recente estoque de compras da Sikora’s.

Vício na internet, nas redes sociais, gera problemas cognitivos.

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