Deus, nós e o Universo

ALEXEY DODSWORTH
Semana passada, descobri que a defesa de doutorado no Brasil tem peculiaridades que a tornam mais interessante do que na Itália. Meu orientador italiano adorou o sistema brasileiro. Na Itália, segundo ele, são três discussões em uma manhã, ou seja, o tempo é bem restrito. Na USP, uma manhã inteira é dedicada a uma defesa, o que permite um debate com maior profundidade. Outra peculiaridade: no Brasil, o candidato faz um [extremo] resumo para o público. Os italianos [havia outro, o prof. Pietro Omodeo, em transmissão direta] adoraram saber que o público pode assistir às defesas. Na Itália, pelo menos em Veneza, não é assim.

Segue abaixo a versão em português do resumo que apresentei para o público. Em breve a tese estará disponível na Biblioteca Virtual de Teses da USP. Agradecimentos pelas fotos: Leonardo Chioda, Ridete Pozzetti e Cledys Magnavita.

“Bom dia a todos. Primeiramente, eu gostaria de agradecer a vocês, professores, por sua gentil disposição em fazer parte desta discussão. Este é o primeiro PhD de duplo título decorrente de um acordo entre a Universidade de São Paulo e a Universidade Ca’ Foscari de Veneza, o que é para mim uma honra. Estou certo de que isso é só o começo e que iremos fortalecer cada vez mais os nossos laços acadêmicos no futuro.

Um agradecimento especial é dirigido aos meus orientadores: o professor Fabrizio Turoldo, que atravessou o oceano para estar conosco, hoje; e para o professor Renato Janine Ribeiro, por seu corajoso apoio à minha tese.

Ressalto o adjetivo “corajoso” porque, quando o assunto é filosofia, o transumanismo tende a não ser um tema lá muito bem vindo, academicamente falando. Acadêmicos tendem a ver o transumanismo como um tipo de argumento de ficção científica e, por isso, como algo pouco importante. O professor Renato, por outro lado, nunca subestimou a ficção científica. E por isso que eu quero começar citando Arthur Clarke, em vez de um filósofo tradicional.

Segundo Clarke, ‘a ficção é melhor do que a não-ficção em alguns sentidos (…) Você pode alargar a mente das pessoas, alertando-as para as possibilidades do futuro, o que é muito importante em uma época em que as coisas estão mudando rapidamente’.

Quando se diz que o transumanismo é mais ficção do que filosofia, eu concordo. Mas isso não é um demérito, muito pelo contrário. Em uma época em que o progresso técnico se desenvolve freneticamente, é importante vislumbrar consequências. Sobretudo, é importante propor modos de aumentar as chances de existência de um futuro para nossos descendentes. Em uma ampla gama de aspectos, o transumanismo é um movimento dedicado a inventar o futuro, a propor o futuro em vez de predizê-lo. Transumanistas têm um objetivo, e este pode ser resumido em uma palavra: extensão.

Quando eu comecei minha pesquisa, eu tinha a intenção de abordar a extensão da vida individual. Questões tais quais “imortalidade” e “longevidade” caminhavam para ser meus temas nucleares. Mas eu rapidamente me dei conta de que há um grande número de teses sobre estes temas. O professor Renato Janine Ribeiro certa feita, tempos atrás, disse-me: ‘não reescreva de modo chato o que alguém já escreveu brilhantemente’. Deste modo, decidi seguir seu conselho e por isso a minha tese é sobre extensão da vida, mas não sobre extensão individual da vida.

Indo direto ao ponto: minha tese é sobre a desejável sobrevivência da consciência neste universo. Não importa se esta entidade for humana ou não. O que o transumanismo quer é assegurar que o fantástico fenômeno da consciência não venha a morrer com o nosso planeta quando a hora chegar.

E esta é a razão pela qual devemos ir rumo ao céu: para aumentar as chances.

Mas por que isso é tão importante? Ocorre que, sob uma perspectiva transumanística, a consciência possui valor intrínseco. Permitam-me esclarecer algumas definições:

Uma abordagem comum para a ética é reconhecer dois tipos de valores nas coisas. O primeiro é o valor instrumental: a identificação de quão útil uma coisa é para as pessoas. O valor instrumental é sempre contingente, ou seja, ele depende do contexto. Nós podemos dizer que algo é mais valioso do que outro, instrumentalmente falando. Não há controvérsias éticas no tocante a este conceito, dado que algumas coisas são, de fato, mais valiosas que outras. Quando o assunto é valor instrumental, eventuais controvérsias serão sempre técnicas. Nós podemos discutir se uma coisa é útil ou não. Não há problemas éticos em dizer, por exemplo, que esta substância não é útil para aquela doença. Este é um julgamento técnico baseado em contexto.

Um segundo tipo de valor que às vezes se atribui a coisas é o valor intrínseco. Valor intrínseco é um conceito controverso que propõe que existem objetos no universo que merecem mais consideração independentemente de sua utilidade. Estas coisas, dizem alguns filósofos, têm um valor inerente.

É difícil entender como algo pode ter valor sem alguém que observe isso, dado que sem um observador todos os objetos são simplesmente matéria. Sob um ponto de vista religioso, humanos são valiosos por causa de Deus, que é o supremo observador. Este é um tipo de argumento que demanda fé para ser aceito. Mas nós estamos em uma discussão filosófica, não em uma discussão teológica. Deste modo, como podemos – sem apelos religiosos – defender a existência do valor intrínseco?

Transumanistas defendem que, dentre todas as coisas existentes, aquelas dotadas de consciência são intrinsecamente valiosas. Eles sugerem que o valor intrínseco existe, mas é uma criação de seres sencientes, portanto aplicável a eles.ó

Filósofos tendem a divergir sobre quais entidades merecem ser consideradas intrinsecamente valiosas. O antropocentrismo leva em consideração que a razão é a base do valor intrínseco, portanto apenas humanos merecem ser considerados intrinsecamente valiosos. Eu discordo fortemente disso. Conforme explico em minha tese, razão e inteligência derivam da senciência, ou seja, são atributos consequenciais da senciência. Uma entidade não precisa ser racional e inteligente para saber o que é valioso para ela. A capacidade de evitar sofrimento e buscar prazer demonstra que a entidade sabe o que vale e o que não vale. Ou seja, o conceito de valor emerge com a senciência, e não importa que uma específica entidade seja incapaz de falar sobre isso. Transumanistas têm insistido nestes pontos desde meados do século passado.

Em 2017, o professor Turoldo me apresentou à obra de Hans Jonas, e eu fiquei fascinado ao constatar alguns pontos em comum entre ele e os transumanistas. Por exemplo: Jonas é claramente contra uma exclusividade antropocêntrica no que diz respeito ao valor intrínseco. Conforme o professor Turoldo escreve em seu livro ‘Bioética e Ética da Responsabilidade’ (página 9), ‘o ser vem compreendido por Jonas em um sentido teleológico, ou seja, como um ser finalisticamente orientado à própria autoconservação (…) Jonas descreve um ser que percebe a si mesmo como bom e que, por isso, quer conservar a própria existência’ [tradução minha].

Tudo considerado, pode-se dizer que Jonas está alinhado com a proposta transumanista de extensão da vida em um sentido coletivo. De acordo com os transumanistas, a vida é melhor do que a não-vida, e seres sencientes querem viver. Quanto mais felicidade, mais desejamos a vida. O telos da vida senciente não é apenas “continuar a viver”, mas continuar a viver prazerosamente.

Até aqui eu não disse algo de original. No que diz respeito a teses de doutorado, um certo grau de originalidade é esperado. Caso contrário, eu corro o risco de apenas repetir o que já foi dito antes. Uma tese filosófica deveria oferecer alguma contribuição para uma discussão específica. Mesmo que tal contribuição seja pequena. Então vamos lá:

O núcleo de minha tese está alinhado com o primeiro tópico da declaração transumanista, que diz: ‘vislumbramos a possibilidade do alargamento do potencial humano através da superação do envelhecimento, dos vieses cognitivos, do sofrimento involuntário e de nosso confinamento ao planeta Terra’ [tradução minha].

Eu tenho abordado em minhas pesquisas principalmente a superação de nosso confinamento ao planeta Terra, e o faço por uma razão filosófica muito específica: tal superação é o único modo de evitar o ‘summum malum’ (“mal supremo”, em latim). Filósofos têm definido o problema do ‘summum malum’ de várias maneiras. Talvez o mais famoso dentre todos seja Thomas Hobbes, que define que o mal supremo a ser evitado é a morte violenta.

Hans Jonas, por outro lado, discorda de Hobbes. De acordo com Jonas, o mal supremo é a extinção em massa, não a morte individual. As considerações de Hobbes estão restritas às condições do mundo em sua época. Naquele tempo, um soberano não tinha o poder de afetar o mundo inteiro em decorrência de suas decisões erradas. Atualmente, uma pessoa poderosa e louca é suficiente para danificar o planeta. Dia após dia, o progresso tecnológico empodera governos e pessoas de uma forma muito perigosa. Ao longo de sua vida, Jonas testemunhou o holocausto e a ascensão da bomba atômica, o que foi suficiente para fazê-lo entender o quanto o conceito de Hobbes de ‘mal supremo’ era pálido diante de tudo isso.

O problema que eu pus é: apesar de eu concordar com a definição de Jonas de ‘mal supremo’ como ‘extinção em massa’, eu discordo fortemente de suas ideias biogeocêntricas. Conforme vocês podem ler no primeiro capítulo de minha tese, Jonas é contra a expansão espacial. Ele escorrega em um falso dilema quando diz que nós deveríamos cuidar de nosso planeta em vez de investir tempo e dinheiro em empreendimentos espaciais. Minha tese sustenta que as declarações de Jonas contra a expansão espacial não são apenas um falso dilema, mas são também uma séria contradição de suas próprias ideias a respeito de teleologia. Deixem-me tentar demonstrar meu ponto:

Levando em conta que auto-preservação é um imperativo de acordo com o próprio Jonas, e levando em consideração que nosso planeta vai morrer mais cedo ou mais tarde, há uma contradição quando Jonas diz:

‘Vamos nos preocupar com o nosso planeta. O que quer que exista lá fora, é aqui que nosso destino será decidido. E, junto com o nosso destino, essa parte da aposta da criação que está em nossas mãos e pode tanto ser preservada quanto traída’ [tradução minha].

Logo, o núcleo do primeiro capítulo de minha tese é: de modo a expandir a existência da consciência, é necessário disseminar a vida através do universo. Se nós nos mantivermos restritos ao nosso planeta, nós iremos contra nosso impulso de autopreservação. Se nós nos mantivermos restritos ao nosso planeta, iremos certamente desaparecer. A expansão espacial não garante um futuro para a consciência, mas aumenta as chances.

Notem por favor que eu não estou falando em salvar a humanidade necessariamente, sobretudo se por ‘humanidade’ nós entendemos nossa atual forma. Para transumanistas o que importa é a consciência, seja ela natural, artificial, humana, transumana, alienígena, metade biológica e metade tecnológica etc. De acordo com transumanistas, não é a nossa forma humana que nos faz especiais, e sim a nossa consciência, e eu concordo com eles.

Jonas, ao contrário, apela para a importância de “preservarmos nossa real essência humana”, e parece bastante assustado com as possibilidades de uma pós-humanidade cosmicamente expandida. Conforme apontei em minha tese, sua contradição jaz no fato de que apesar de seu acertado entendimento a respeito da natureza do mal supremo, ele leva em consideração apenas os danos causados pelo progresso humano. Mas o fato é que na época de Jonas nós mal tínhamos noção dos danos causados por fatores cósmicos.

Pensar em nosso planeta como estável é um erro comum. Nosso planeta sofreu eventos causadores de extinção global antes, os quais foram causados por fatores extraterrestres. Nós tomamos a estabilidade planetária como algo garantido, o que é um erro perigoso.

O professor Douglas Galante, que está aqui hoje conosco, é o primeiro doutor em astrobiologia teórica no Brasil. Se vocês quiserem saber as muitas formas pelas quais a nossa vida pode ser erradicada por fatores extraterrestres, tenho certeza de que ele poderá oferecer tal informação em detalhes muito interessantes e aterradores. Ele também pode explicar a importância prática da pesquisa espacial melhor do que eu.

Em resumo, eticamente falando a minha tese está alinhada com o entendimento de Jonas sobre a natureza do mal supremo. E é exatamente por conta deste alinhamento que eu digo que Jonas contradiz a si mesmo quando ele alega que o planeta Terra é o nosso ‘destino’. A minha tese sustenta que se nós quisermos evitar o mal supremo, o planeta Terra não deveria ser entendido como um ‘destino’, mas como um ponto de partida. Permanecer apegado ao nosso ponto de partida nos conduziria à extinção em massa, eventualmente.

O segundo capítulo de minha tese é sobre metafísica. Enquanto o primeiro capítulo questiona se a vida tem uma finalidade, o segundo capítulo questiona se o universo tem finalidade. Eu começo citando o astrofísico Martyn Rees, que demonstra como nosso universo parece ser finamente ajustado de modo a criar vida. Ou seja, o nosso universo é biofílico. Mas é o próprio Rees que contra-argumenta e diz que esta peculiaridade cósmica pode muito bem ser acidental. Talvez exista uma ampla gama de universos alternativos cujas leis não permitem a existência de vida, conforme teoricamente demonstrado por físicos tais quais Hugh Everett III e David Deutsch.

Teleologia cósmica é um tema frequente em filosofia e é um dos três principais argumentos que tentam demonstrar a existência de Deus. O argumento teleológico, o qual é muito apreciado por proponentes do design inteligente, diz que deve existir uma inteligência ordenadora por trás da cena. Ainda que este tipo de argumento soe como mero pensamento desejoso, é baseado em evidências físicas de um cosmo finamente ajustado.

Mas mesmo que nós consideremos que exista uma inteligência que criou o nosso universo ‘finamente ajustado’, nada justifica que tal inteligência seja o mesmo Deus das religiões monoteísticas.

Dentre os filósofos dedicados a pensar a respeito da natureza e objetivos da criação, há dois que se destacam em minha tese: Teilhard de Chardin e Hans Jonas. O ponto em comum entre eles é que ambos defendem a ideia de um Deus que abdica de seu poder de modo a permitir a existência do universo. Por que Deus faria isso? Ambos dizem que não sabem. Em ambos os casos, nós somos apresentados a um Deus extremamente poderoso cuja imperfeição jaz no fato de que ele deseja. Por causa disso, Jonas usa a expressão ‘Eros cosmogônico’ em vez de oferecer uma narrativa cosmológica para a criação.

De acordo com Jonas, o universo é criado por um impulso desejoso, pelo auto-sacrifício divino, e não há garantia de que este ato resultará em algo bom. Por causa disso, eu digo que a cosmogonia de Jonas é uma interessante reversão da aposta de Pascal. Ou seja, é Deus quem aposta em nossa existência. Se há algum plano para o universo, sua realização depende de nós. Nós não estamos nas mãos de Deus, é o oposto: ele jaz em nossas mãos.

Por fim, mas não menos importante, eu sustento que Jonas não tem razão em seus pensamentos pessimistas acerca de um jogo divino. Se existe um Deus que joga um jogo, tal jogo tem sido jogado não apenas em um universo, mas em vastos, talvez infinitos universos alternativos, o que aumenta as chances de um cosmo bem-sucedido pleno de vida e consciência, um cosmos capaz de reproduzir a si mesmo – em uma história sem fim.”

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